terça-feira, 20 de outubro de 2015

O INCRÍVEL ESCRITOR SOLDADO

Havia já algum tempo que ele tinha chegado a esta conclusão: se quisesse produzir algo realmente interessante e único, era preciso ter vivido algo realmente interessante e único. Tinha uma chance real diante de si e teve a sensação de que tudo se encaixava perfeitamente demais para ser apenas coincidência. Um outdoor das forças armadas convocando os “corajosos para defender os oprimidos” e pregando o uso da “força em prol da justiça”. Achou o anúncio apelativo e cheio de clichês, mas sabia que os clichês só eram repetidos porque funcionavam e teve de admitir que a coisa havia mexido com ele. Ainda mais levando em conta o sonho que tivera recentemente. O outdoor pregava o alistamento espontâneo para auxiliar a população de um pequeno país do outro lado do oceano que vivia uma espécie de holocausto desde que o ditador que assumira o poder havia ordenado o extermínio de todos os descendentes de uma tribo rival a sua. O sonho era sobre ele correndo com um fuzil em mãos no meio de uma batalha, procurava qualquer coisa para servir de proteção. Os seus estavam deitados na relva e só ele corria (porque precisava correr). O campo estava aberto demais e, quando teve a sensação de que iria dar merda, sentiu um tiro atravessando o seu braço direito. Acordou em sua cama com este formigando embaixo de seu corpo.

Alistou-se ainda naquele dia. O excesso de reflexão só promovia dúvidas e era favorável à comodidade. Havia servido ao exército por dois anos apenas para ter certeza absoluta de que não gostava daquilo. Era totalmente contra guerras e, além do que lera na internet e vira pela TV, não conhecia nada daquele povo que agora perecia em uma. O motivo de seu alistamento era puramente artístico. Queria ser escritor e concluíra que para “quebrar a dormência” de sua criatividade precisava de uma experiência intensa. Como Salinger ou Hemingway. Admirava especialmente o último. Tinha certeza de que muito do que ele escrevera se devia àquilo que havia vivido. Nunca quis se aprofundar demais em sua biografia para evitar possíveis decepções, preferia ficar com a imagem que havia construído a seu respeito baseado nos livros dele que havia lido. Claro que sabia da história do rifle de caça. Apesar de ser contra o suicídio, julgava que, no caso em questão, havia sido mais uma defesa da dignidade. Quando a vida, de modo desleal, tentava tirá-lo do controle da situação, ele venceu a batalha. Este era o bom e velho Hemingway.

O incrível escritor soldado até já havia escrito algumas coisas... mas faltava-lhe intensidade e, quando tentava empregá-la, soava artificial. Em casa, na hora do jantar, comunicou o pai de sua decisão (viviam juntos só os dois desde que a mãe perdera a dura luta contra a leucemia). Este parou o garfo a meio caminho entre o prato e a boca e disse apenas, “muito bem, filho”. No íntimo, carregava uma preocupação crescente desde que o filho passara a frequentar mostras artísticas e feiras-de-não-sei-que-porra que, deus nos livre, sempre podem ser coisas de bicha. Não havia antídoto melhor para isso do que uma guerra.

Naquela noite, na hora do banho, o incrível escritor soldado examinou seu braço direito refletido no espelho. Imaginou como ele ficaria com uma cicatriz. Seria perfeito. Isso também impressionaria as garotas. Imaginou-se fumando sem camisa à janela depois do sexo, a garota levanta e se chega junto dele. De repente, percebe a cicatriz, toca cuidadosamente nela e pergunta, “como aconteceu?”; ele responde, “se não se importa, preferia não falar sobre isso”; ela insiste, “foi na guerra, não foi?”; ele a olha com um olhar de quem já viu o que de mais terrível a vida tem para mostrar, traga o seu cigarro e volta-se para a janela, como se em algum lugar lá fora, os demônios de seu passado ainda estivessem à solta, perseguindo-o.

Definitivamente, precisava de uma cicatriz. Se não a conseguisse na guerra, providenciaria uma. Poderia esquentar uma faca, uma chave de fenda ou quem sabe uma chave de roda... quando chegasse a hora, pensaria em alguma coisa. Devia doer pra caralho, de qualquer forma, valeria a pena. E poderia comprar aquelas pomadas ou sprays anestésicos que os tatuadores usam... Será que o Hemingway tinha alguma cicatriz? Sem dúvida devia ter, o cara era tipo um Clint Eastwood da literatura. Filha da mãe, além de ser um escritor reconhecido no mundo todo, ainda devia fazer um sucesso desgraçado com a mulherada.

Era a hora de se concentrar em sua própria história. Imaginou o dia em que o ditador se renderia, ou seria preso, morto ou coisa que o valha, e ele, o incrível escritor soldado, entraria na praça central sobre um tanque, ao lado de seus companheiros, enquanto a multidão os aclamava. Verdadeiros heróis. Não teriam sobrado muitos de seu batalhão, talvez ele e mais uma meia dúzia. Sim, a guerra era cruel.
Seis meses depois, a realidade tomava o lugar da fantasia e ele desembarcava, ao lado de mais 150 soldados, num local de mata fechada. Ainda quando estavam no rio, já era possível ouvir o som das explosões e das balas zunindo. Depois de pouco mais de meia hora de caminhada, entravam na zona de conflito. O incrível escritor soldado levanta o mosquetão e corre em direção ao front. Queria dar uma página de abertura impactante ao diário que carregava dentro da farda.

Um choque o atira para trás e tem a sensação de ter sido partido ao meio. Leva a mão à barriga e sente o contato morno que temia. Foi considerado a primeira baixa oficial de seu batalhão. O médico que atestou sua morte diria ao capitão que a bala penetrou o fígado, causou um efeito inicial de vácuo que culminou com uma explosão do órgão no momento da saída. Quanto ao incrível escritor soldado, os últimos pensamentos que passaram por sua consciência foram, “Porra! No sonho, era no braço... que isso? Que fedor! Puta que pariu, não acredito que me caguei!”

quinta-feira, 22 de maio de 2014

BILE AMARELA (Xanthé Cholé)

Me aproximo do espelho e olho no fundo dos meus olhos, através da pupila
Enxergo um touro negro com sede de revanche adubada por ódio, humilhação contida
Preso a um barbante amarrado a um graveto... o que o prende realmente?
Talvez um chicote distante, brandido há muito tempo, agora ausente

O touro inerte é açoitado por palavras, risos de escárnio e repugnância
A força dele cresce alimentada por mágoas e restos de uma dor em silêncio
Sinto o galopar, o som apressado de suas patas, do meu coração rumo à garganta
Enfim, o desastre anunciado liberta a fera e apaga a consciência num só momento

Tomo em mãos seu chifre e com prazer rasgo ventres, vísceras e gargantas
Pelo caminho, trituro, engulo, vomito e engasgo, entre clamores, súplicas e barganhas
É tarde para pedidos, é tarde para os perdidos... não se trata de justiça, apenas destruição
Mais um golpe para os feridos, sem clemência para os rendidos, mais sangue para o chão

Sinto a energia do sonho partido, do átomo partido, brotando da fissura e da fissão
Hoje sou o anjo mais nocivo, mais radioativo e não há fuga... ou solução
Hoje sou Shiva, Ares, Urano ou urânio em reação
Contamino a água e deformo crânios até a próxima geração;

A lógica não poderia ser mais óbvia, a energia é proporcional à repressão
Não há mais saída de emergência ou válvula de escape, só resta explosão

Como o canibalismo da alcatéia pinta a neve de vermelho,
ou como a rainha da colméia pede a morte do parceiro
Como um exército de berserkers espalha caos e pesadelo

Trago em uma mão o fim da esperança e na outra o início do desespero

terça-feira, 13 de maio de 2014

FLEUMA (Plégma)

Tanto fez como tanto faz, de trás para frente ou de frente para trás
Todo círculo começa no ponto em que acaba, e todos eles são iguais
Nenhuma surpresa é inesperada, se a espera já dura demais
O valor só existe na importância dada, e nada disso importa mais

Generais generalizam seus soldados genéricos
Soldados soldam solados de coturnos seriados
A norma normatiza a doença e o remédio
O ciclo repassa o passado no futuro e o futuro no passado

O meio, o morno, o médio
O mesmo contorno do tédio
Seu sonho único já sonhado por tantos
Causa muito embaraço e pouco espanto

Me deixa amortecer,
Deixa o amor tecer e depois enroscar um fio solto numa aresta do dia a dia
Deixa anoitecer,
Deixa a noite ser a agulha que se presta à anestesia
Prometo ficar abaixado na trincheira, prometo continuar fechado no casulo
Prometo dormir a vida inteira, se me deixar voltar para o útero

Mas se o aviso diz: cubra
Se descubra e não desvie os olhos por quanto tempo conseguir
E se o aviso te dispensa
Você pensa que devia ter pensado que podiam te substituir

Incontáveis engrenagens idênticas põem para funcionar a máquina da rotina
Intermináveis passagens concêntricas de um mesmo dia que nunca termina
O velho carimbo desbotado preenche com o mesmo desenho tantas folhas em branco
Enquanto rosas de arame farpado cobrem muros, desejos, escolhas e campos

Nada se cria, nada se perde, tudo se repete
Nenhuma surpresa é inesperada, se a espera já dura demais
Da poeira à poesia, o fim da estrofe se reflete:

O valor só existe na importância dada, e nada disso importa mais

terça-feira, 6 de maio de 2014

SANGUE (Haima)

Verão, outono, inverno, primavera... são tantas estações em que não passa nenhum trem
A locomotiva apita, compassa, com pressa... acerta o compasso do coração de alguém
Que chora, que grita, que sorri e que espera...uma vaga no vagão de si mesmo
Mas quando a roda perdida enfim se recupera, entra nos eixos e volta pros trilhos
O maquinista muda de estação... pra uma freqüência secreta que não se ouve com os ouvidos

Queima o carvão... como brasa branda que se aviva pela brisa
Aquece o coração... como o andar de quem anda passeando pela vida
Acende a chama e me chama pra sentar perto da fogueira
Com voz mansa de quem ama ver o fogo queimar a noite inteira

Mas se for para queimar pela metade, queima a meia-noite, queima o meio-dia...
queima devagar esta noite, para eu aproveitar bem a estadia;


E depois que fogos amarelo-avermelhados transformarem galhos marrom-enluarados em cinzas;
Pintarei ruas e telhados como pintor despreocupado, sem ter tido sentido e sem tintas.
Com talhos e retalhos, com calos que não calam a inspiração verdadeira
Entalho o trabalho que me impele, em pele, em pano e em madeira.
Como artesão desnaturado, sem dinheiro e sem salário, pelo prazer da brincadeira.

Admito ter perdido a bússola, o sono, a inocência e o juízo
Mas perdi por distraído e voltaram para o dono nos achados e perdidos
Tenho me encontrado mais perdido do que achado
Mas acho que agora estou quase me encontrando

Acho que meu lugar é ao lado... de quem esteve me procurando.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

BILE NEGRA (Mélaina Cholé)

Tenho acordado assustado, como quem sente que está atrasado para algo da maior importância, mas não lembra o quê.
Tenho procurado desculpas e argumentos, para as minhas faltas e para as dos outros, feito vista grossa aos pequenos pecados que machucam...
Tenho recorrido a vícios antigos, vestidos com roupas novas e bem passadas, procurado uma forma elegante de destruição.
Tenho invadido templos vazios em busca de ídolos que já se foram.
Tenho jogado conversa fora porque não vale a pena guardar...
Tenho coberto e lacrado espelhos, que insistem em me mostrar o cinismo que repudio... para que possa continuar, cinicamente, a repudiá-lo.
Tenho visto meus versos e idéias como plágios, expressos (de maneira melhor!) por tantos outros que vieram antes... tenho me entediado pela espera do novo e só o encontro quando já envelheceu.
Tenho andado me esgueirando por vielas escuras como quem se assume indigno por essência, baixado a cabeça para que nenhum olhar cruze com o meu e me descubra... e me revele ao mundo como o embuste que venho guardando em segredo de mim mesmo.
Pois há muito que venho escrevendo obras, dignas de um gênio, em línguas que não existem; pintado telas (não menos geniais!) com água e óleo incolor; escrito poesias que são metralhadoras de catarse, mas que nunca recordo de cor.
Tenho perdido o sono por conta de uma culpa que não conheço.
Tenho me assustado com estalos dos assoalhos de madeira, como quem faz o errado, ciente de que o está fazendo.
Tenho odiado o que está por perto e amado o que está longe... e depois, tenho chorado de saudades e sangrado teatralmente quando aquele que, outrora a meu lado, se afasta.
Tenho feito falsas e interesseiras penitências em público, apenas para poder me culpar ainda mais...
Tenho gasto meus últimos anos a lamentar pelo tempo perdido... me queixado da miopia do mundo enquanto tropeço em minha própria bagunça.
Tenho ensaiado e atuado, apaixonadamente, para uma platéia bocejante que perde a hora do aplauso.
Tenho andado pelas ruas do lugar em que nasci como um forasteiro, visto o antigo com estranheza e receio.
Tenho aguardado a hora de ser pego em flagrante, cometendo (sem saber) o maior dos delitos (que ainda não imagino qual).
Tenho pago diariamente parcelas de uma dívida que só faz crescer e que me cobra mais do que sou.
Tenho olhado para as estrelas com ares de saudades e iludido os ignorantes com pretensão messiânica.


Tenho procurado o fracasso com um misto de pesar e alegria, como o viciado se destrói na repetição. 

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Um banho quente e meias secas para um dia solitário.

Fui entrando na praça já com a sensação de que as balanças ainda estariam molhadas. Isso afetou um pouco meu estado de espírito que, confesso, já não estava dos melhores. Segui parte do caminho pela grama, apesar de ela estar um tanto encharcada e molhar os meus pés. Quando me sentei no balanço, estava me sentindo meio idiota por ter escolhido aquele caminho e agora estar com as meias molhadas e os dedos começando a gelar. Este meu amigo já estava lá, sentei-me ao seu lado. Ele se embalava de um modo curto e lento, como costumava fazer.

- Eu olho pra estes cães girando atrás do próprio rabo – havia um cão fazendo isso na praça – e imagino que as pulgas não devem ter noção deste movimento. Exatamente como a gente não percebe o movimento da Terra.

- E? – perguntei tentando passar indiferença.

- Nada... simplesmente penso. Tem horas que é bom não perceber o movimento. Eu penso que se, de repente, a Terra simplesmente parasse de girar, assim, do nada, muitas pessoas morreriam instantaneamente atiradas contra algo que estivesse por perto. Só que algumas delas sairiam voando por aí numa velocidade absurda, esperando o impacto.

- E não é isso que a gente faz o tempo todo? Espera o impacto...

Ele estava mais embalado agora, então, arrastou os pés no chão e parou a balança. Virou-se para mim e cravou os olhos no lado esquerdo do meu rosto:

- Que história é essa? Vai dizer que você começou com aquela merda de escalada de novo? Olha só, campeão, a vida pode te surpreender, as coisas podem mudar. Mas a premissa básica para isso é que você esteja vivo.

- Blá... blá... é pra este tipo de merda que eu venho aqui? Faz uns 22 mil anos que não mando mais essas piras de escalada – menti.

Tirei um isqueiro do bolso e tentei abrir o maço de cigarros com naturalidade. Acabei tendo problemas com a fita de abertura, o que denunciou a minha já óbvia falta de experiência.

- Fumando? Quem diria... a coisa deve estar feia mesmo.

- Só curtição – respondi.

- Pessoas como você não fumariam por curtição.

- Como assim “pessoas como eu”? Por favor, não me rotule, isso soa patético...

Ele riu:

- Hoje é o dia! O rapazinho está num dia daqueles! Como andam as coisas, chefe? Garota errada?

Tinha acabado de acender o cigarro e já me sentia um pouco mais senhor da situação. Devia ser o terceiro cigarro que fumava, ou tentava fumar, em toda minha vida. Ao menos, não tossi.

- Existe garota certa? Pra mim, não sei...

-Vamos lá, quem é a senhorita? – insistiu, com um interesse verdadeiro.

Ignorei e fiz de conta que analisava com preocupação uma parte da corrente que prendia o balanço e parecia comida pela ferrugem. Nessas alturas, a balança já tinha molhado minha bunda, meus dedos dos pés estavam meio amortecidos pelo frio e eu deixava aquele cigarro queimar, torcendo pra que acabasse logo. Estava meio arrependido de ter ido na tal praça, apesar de que a presença desse meu amigo sempre me trazia algum conforto.

- Sai fora... – falei com desdém.

Forcei uma tragada e senti um desespero para falar logo, antes que ele mudasse de assunto.

- É uma menina do terceiro ano. Parece que ela gosta de um cara mais velho, um babaca completo. Você já reparou como as garotas sempre gostam do tipo errado? Que merda é essa que acontece?

- O que aconteceu com o mantra que eu havia te ensinado? “Mais velhas, não... mais velhas, não”, você deveria repetir isso em casa, queimando alguns incensos e sentado em posição de lótus. Cara, na sua idade, mais velhas simplesmente não funcionam. Quem sabe, um dia, mas, definitivamente, não agora.

- O que você sabe sobre isso? Você nem é real – rebati com a voz meio falha pela fumaça.

Ele riu.

- Oooww! Pegou pesado, hein! Eu adoro você, sabia, principalmente, quando está emputecido desse jeito.

- Talvez eu seja do “tipo errado” também.

- Eu não apostaria, os caras do tipo errado jamais teriam este tipo de conflito.

- Bem, que se foda. Eu nem gosto tanto dela assim mesmo... A gente nunca trocou uma palavra sequer. Só achei bonito o jeito como ela tirava o esmalte das unhas um dia num banco do refeitório, completamente compenetrada na tarefa, como se aquilo tivesse um valor absurdo. E eu nunca fui de reparar nas unhas das mulheres, mas parece que o valor que ela dava pra coisa, de certa forma, me fascinou também. E agora a primeira coisa que olho é pras mãos delas.

- É, o mistério que nos fascina. Tem tocado?

- Quase nada – respondi com preguiça, este assunto me frustrava –, perda  de tempo... meu pai acha que vou me tornar um fracassado completo se continuar insistindo nisso.

- Ele te disse isso?

- Não, nem precisa, pelo jeito como ele me olha, dá pra sacar.

- Você adivinha olhares agora? Pergunta pra ele, único jeito de saber.

Eu ri e balancei a cabeça.

- O que foi? – perguntou com ar de espanto.

Ignorei ele, dei mais uma tragada e mantive o riso nos lábios. Me sentia melhor e até o cigarro não parecia tão ruim.

- Qual foi a piada? Compartilha, também quero rir... – o sujeito exalava curiosidade.

- Você e essas suas porcarias de conselhos... Lembra aquela vez que você me disse que eu deveria falar pro professor de química que os pêlos da orelha dele geravam desconforto nas pessoas e que os outros zoavam ele por causa disso.

O desgraçado começou a rachar de rir ao meu lado. Não agüentei e ri também:

- Foda-se você e os seus conselhos – falei.

- A história não é bem assim, eu disse que seria honesto de sua parte falar pra ele. Não tenho culpa se ele não estava preparado pra ouvir a verdade.

Ficamos um tempo quietos, eu com os olhos voltados para o chão olhando algumas formigas que carregavam folhas num complexo sistema de trânsito e sempre paravam antes de se chocarem quando uma estava indo de encontro a outra, como costumam fazer. Enquanto isso, esperava o resto do cigarro queimar sozinho, estava um pouco tonto, mesmo assim não queria jogá-lo fora pela metade porque tinha certeza que o meu amigo iria notar, provavelmente não diria nada, mas com certeza iria notar. Ele olhava para frente com os olhos um pouco inclinados para o alto, em direção a dois pombos parados sobre os fios de alta tensão estendidos de um poste a outro.

- Pousados despreocupadamente sobre trocentos mil volts e nada acontece com eles... como se estivessem sobre um inofensivo varal. Pra que haja corrente, é preciso haver diferença de potencial elétrico, o que só aconteceria se eles tocassem um outro objeto que não o próprio fio. Nós poderíamos andar dependurado num fio desses e não aconteceria porra nenhuma. Agora, bastaria uma leve esbarrada no poste ou num galho de árvore...

- Não sabia dessa, anda estudando física agora?

- Pássaros... – murmurou.

- Eu até gosto de exatas, de verdade mesmo. O problema são os professores dessas disciplinas... um bando de nerd enrustido que sempre foram massacrados na escola, depois, querem compensar, bancando os fodões pra cima dos alunos. Eles realmente sentem prazer quando você não entende algo e eles podem mostrar o quanto são superiores. E a sensação que eu tenho é que, às vezes, eles têm medo de que possam ser superados. E nas provas, sempre colocam alguma questão que envolve algum tipo de macete idiota, ou alguma variação de uma fórmula que você precisa deduzir, só pra depois te dizerem “muito bem, campeão, você está quase lá, só faltou este truquezinho aqui”. Fodam-se eles.

- Quanta amargura! – ele disse sorrindo. – Parece que você não escolheu o caminho mais seco até aqui – comentou olhando para os meus pés. – Queria saber quem vai ter que desencardir estes cadarços...

- Sei lá, a máquina de lavar ou coisa que o valha...

- Vê-se logo que você é um perito em questões domésticas. Cadarços não são o tipo de coisa que você simplesmente enfia numa porcaria de uma máquina e deixa que ela faça o trabalho por você, enquanto desfruta de um chocolate quente.

- Não sou muito fã de chocolate quente. Prefiro café com leite.

- E o tênis? Vai colocar na máquina também – ele estava esbanjando ironia.

- Engraçado você perguntar isso, eu estava pensando seriamente em pedir pra sua mãe lavá-los pra mim. Nossa, curioso mesmo! Justamente quando eu estava pensando, acho que a mãezinha do meu amigo safado adoraria esfregar estes tênis.

- Hoje você está pegando pesado mesmo...

- Qual é? Você nem é real... vai dizer que você tem uma mãe imaginária também?

- Cala a boca – falou sem se abalar.

O cachorro que estava girando atrás do rabo quando eu cheguei à praça se aproximou da gente, com aquela euforia típica dos cães que sempre me causam um certo espanto simplesmente por constatar que existe uma criatura no mundo que tem tanta energia e empolgação.

- E aí, campeão, o que você conta, meu herói? – ele falou com o cachorro com uma euforia equivalente. – O que você tem aí, hein? Um osso, seu malandro? Eu apostaria que você tinha qualquer coisa, menos um osso... vejam só, o danado tem um osso.

O cão começou a latir sem parar, como se estivesse desfrutando daquela interação excêntrica.

- O quê? Eu não acredito, te deram um osso sintético?! – dava pra sentir uma indignação sincera na voz dele. – Porra, que tipo de dono sacana que você tem? Mas não esquenta, amanhã eu trago um osso pra você, completamente orgânico, o osso mais orgânico que você já roeu em toda sua vida canina..
- Meu Deus, será que você pode calar a boca?

- Este sujeito aqui? – continuou ele na conversa com o cão – Este é um velho camarada meu...

O cachorro continuou latindo.

- Não, amigão, não precisa pegar tão pesado com ele assim... Ele só está um pouco chateado, mas é boa pessoa... você tem alguma mensagem pra passar pra ele?

Foi então que ele começou a traduzir os latidos do cachorro:

“Olá, príncipe dos balanços! Envio-lhe saudações da espécie cannis lupus famliaris...”

Fiz menção de levantar do balanço:

- Pra mim, já deu. Não vou ficar aqui ouvindo esta merda...

O cachorro veio em minha direção e tive a impressão de que rosnou pra mim. Nunca tive essa afinidade toda com cães e, por via das dúvidas, achei melhor ficar na minha até que aquela pataquada toda acabasse. Ele continuou com a tal tradução:

“Senta-te, pequeno príncipe Homo Sapiens Sapiens, e escuta a mensagem: Não aflijas teu nobre, jovial, polivalente...”

- Puta que pariu – balbuciei.

“... cosmopolita e contra-dogmático coração... e saiba que a vida é como um osso...”

- Ai, não...

- ... muito prazerosa, mas também pode ser dura de roer”.

Olhei-o atônito, enquanto ele se esbaldava num pequeno acesso de riso. Não resisti e acabei rindo um pouco também.

- Não acredito que você realmente mandou este trocadilho horrível.

- Não fui eu, foi o nosso amigo aqui. Não é que o safado é espirituoso. Não é, campeão? – desceu do balanço e começou a afagar o cachorro que agora estava em êxtase.

Um assobio ao longe e nosso inesperado companheiro deixou a cena.

- Eu preciso ir pra casa – falei. – Prova de matemática amanhã. Duvido que consiga estudar, mas...

- Ei, o que está acontecendo afinal?

Suspirei. Não estava só fazendo cena, realmente não sabia se queria falar, na verdade, nem sabia direito o que falar:

- Sei lá... tenho andado meio triste, eu acho. Uma tristeza morna, quase confortável, que parece grudada em mim, como um carrapato que vem aumentando aos poucos a cada dia que passa. E... tenho me sentido sozinho também, finjo que prefiro assim, mas, no fundo, não prefiro não...

- Hum, você deveria tentar fazer alguns amigos, amigos assim como você, não como eu.

- Eu tentei, mas eles não querem.

- Como você sabe, pelo olhar deles? Eu já te falei você...

- Eu perguntei, droga, não diretamente, tipo “oi, vamos ser amigos?”. Simplesmente me ignoraram – senti uma certa autopiedade em minha voz que me irritou.

- Você deve ter tentado com as pessoas erradas.

Silêncio por alguns momentos, pensei em acender outro cigarro. Acabei só olhando pra chama do isqueiro acesa. Ele disse:

- Olha só, eu não quero te dar nenhuma lição de moral, nem bancar o conselheiro e nem nada do gênero, mas acho que o grande problema é este seu narcisismo, egocentrismo ou algo que o valha.

- Me poupe...

- É sério, você acha que está sempre no centro das atenções, que as pessoas estão reparando em tudo que você faz, prontas pra te criticar, pra te julgar por qualquer deslize, como se todos os olhos estivessem voltados pra você. E elas estão cagando pra qualquer coisa que não seja o próprio umbigo, chefe, isso eu te digo! Relaxa... sempre tem algum escroto pra te apontar o dedo se as coisas não saírem certo, mas 5 minutos depois ele nem vai lembrar que você existe. E, sabe do que mais, fodam-se essas pessoas que ficam procurando os teus erros. Você não pode viver tua vida inteira como se fosse a porcaria de um chefe de estado no meio de uma conferência diplomática, medindo palavras e gestos como se qualquer ato em falso fosse desencadear a 3ª Guerra Mundial, ou algo do tipo. Você precisa fazer um pouco mais aquilo que você tem vontade. Descobrir o que você quer e simplesmente fazer, ao menos de vez em quando. Se não, campeão, a carga fica pesada demais... e até pode parecer bonito ser o sujeito que carrega a carga pesada e tal, mas, se você não ficar atento, uma hora ou outra essa coisa te esmaga sem você nem se dar conta. Como a tal história do carrapato...

- Eu realmente não sei de onde você tira essas merdas.

- Tudo bem, ninguém gosta quando a coisa toda é jogada assim... Só pense a respeito, não hoje e, quem sabe, nem amanhã... mas quando isso que eu te falei voltar à sua cabeça, procure simplesmente não ignorar.

- Bem, tanto faz, eu tenho que ir... Eu só preciso de meias secas, um banho quente, talvez uma xícara de café e as coisas vão ficar bem. As coisas vão ficar bem... Te vejo amanhã.

- Eu não vou estar aqui amanhã.

- Você sempre diz isso – rebati.

Me segurei na corrente da balança para dar um impulso para levanatar e percebi que a minha perna esquerda estava amortecida, quase caí sentado.

- Droga – disse batendo na perna pra tentar fazer o sangue circular.

Meus pés estavam congelando e eu não sentia direito meus dedos. Seria realmente agradável colocar um outro par de meias e enfiá-los debaixo das cobertas. Percebi que não havia a menor chance de eu estudar para a prova. Definitivamente, não. Fui me afastando dos balanços ainda mancando um pouco, gosto de respirar este ar úmido e frio, logo depois de uma chuva no inverno. Parece mais limpo.

- Ei, campeão!

Me virei. Ele continuava sentado no balanço.

- Eu estive pensando – ele continuou –, não sei se isso já te ocorreu... mas, e se for você quem não é real?

Aquilo me acertou como um tiro. A minha loucura devia estar piorando.

- E se... – falei enquanto tirava o maço de cigarros do bolso – e se nenhum de nós dois formos reais.

- O que aconteceria? Simplesmente desapareceríamos, de uma hora pra outra?

- No final das contas, não é o que acontece? Não seria tão ruim, não é verdade? – acendi o cigarro e a tragada pareceu esquentar meu pulmão, isso fez com que me sentisse real novamente.

Ele sorriu e só então me dei conta de que ele era um tipo que sorria bastante.

- Você não tem jeito mesmo - falou balançando a cabeça.

Voltei pra casa caminhando como quem dá uma volta para matar o tempo. Joguei fora meu cigarro ainda pela metade. Caminhei mais um pouco e, como que por intuição, olhei pra cima. Havia um pombo pousado, sozinho, sobre um fio de alta tensão. 

quarta-feira, 19 de março de 2014

INVENÇÃO


Toda porta fechada tem um buraco de fechadura (espia o espião)
E nenhuma fechadura dura fechada para sempre
Se a dura verdade perdura, fecho os olhos e vejo diferente
Há olhos de verdura, olhos de ver bichos e olhos divergentes
Para o amargo, rapadura; para o amor, um cochicho; para mosquito, repelente.

Antes cedo do que tarde, antes à tarde do que nunca
Antes um segredo que arde, guardado na penumbra
Finjo que sinto até sentir o sentido do sentimento
E depois de sentir, eu sinto muito... pela topada no calçamento.

Faço uma paralisação pelo movimento...
Movimento anti-horário, movimento anti-relógio, movimento anti-pressa
Movimento anti-remo, movimento anti-rima
Contracorrente, contra cadeado, desencadeando correnteza acima.

Quando crescer, além de alto, vou ser detetive
De lupa na mão, cachimbo na boca e olhar pensativo
Procurando pistas e pegadas de mistérios intrigantes
De um beijo roubado, coração seqüestrado, Cupido assaltante

Quando envelhecer, além de alto e velho, serei cientista maluco
De cabelo armado, jaleco amarrotado e óculos redondos
Com tubo de ensaio, ensaiando a descoberta de um descobrimento caduco
A novidade, a relativa idade, a grave idade, de um tempo sem desconto
Idade vem, idade vai, vai.. idade... vai para longe!

O tempo passa, arando a terra, semeando sal, brota saudade.