quarta-feira, 16 de abril de 2014

Um banho quente e meias secas para um dia solitário.

Fui entrando na praça já com a sensação de que as balanças ainda estariam molhadas. Isso afetou um pouco meu estado de espírito que, confesso, já não estava dos melhores. Segui parte do caminho pela grama, apesar de ela estar um tanto encharcada e molhar os meus pés. Quando me sentei no balanço, estava me sentindo meio idiota por ter escolhido aquele caminho e agora estar com as meias molhadas e os dedos começando a gelar. Este meu amigo já estava lá, sentei-me ao seu lado. Ele se embalava de um modo curto e lento, como costumava fazer.

- Eu olho pra estes cães girando atrás do próprio rabo – havia um cão fazendo isso na praça – e imagino que as pulgas não devem ter noção deste movimento. Exatamente como a gente não percebe o movimento da Terra.

- E? – perguntei tentando passar indiferença.

- Nada... simplesmente penso. Tem horas que é bom não perceber o movimento. Eu penso que se, de repente, a Terra simplesmente parasse de girar, assim, do nada, muitas pessoas morreriam instantaneamente atiradas contra algo que estivesse por perto. Só que algumas delas sairiam voando por aí numa velocidade absurda, esperando o impacto.

- E não é isso que a gente faz o tempo todo? Espera o impacto...

Ele estava mais embalado agora, então, arrastou os pés no chão e parou a balança. Virou-se para mim e cravou os olhos no lado esquerdo do meu rosto:

- Que história é essa? Vai dizer que você começou com aquela merda de escalada de novo? Olha só, campeão, a vida pode te surpreender, as coisas podem mudar. Mas a premissa básica para isso é que você esteja vivo.

- Blá... blá... é pra este tipo de merda que eu venho aqui? Faz uns 22 mil anos que não mando mais essas piras de escalada – menti.

Tirei um isqueiro do bolso e tentei abrir o maço de cigarros com naturalidade. Acabei tendo problemas com a fita de abertura, o que denunciou a minha já óbvia falta de experiência.

- Fumando? Quem diria... a coisa deve estar feia mesmo.

- Só curtição – respondi.

- Pessoas como você não fumariam por curtição.

- Como assim “pessoas como eu”? Por favor, não me rotule, isso soa patético...

Ele riu:

- Hoje é o dia! O rapazinho está num dia daqueles! Como andam as coisas, chefe? Garota errada?

Tinha acabado de acender o cigarro e já me sentia um pouco mais senhor da situação. Devia ser o terceiro cigarro que fumava, ou tentava fumar, em toda minha vida. Ao menos, não tossi.

- Existe garota certa? Pra mim, não sei...

-Vamos lá, quem é a senhorita? – insistiu, com um interesse verdadeiro.

Ignorei e fiz de conta que analisava com preocupação uma parte da corrente que prendia o balanço e parecia comida pela ferrugem. Nessas alturas, a balança já tinha molhado minha bunda, meus dedos dos pés estavam meio amortecidos pelo frio e eu deixava aquele cigarro queimar, torcendo pra que acabasse logo. Estava meio arrependido de ter ido na tal praça, apesar de que a presença desse meu amigo sempre me trazia algum conforto.

- Sai fora... – falei com desdém.

Forcei uma tragada e senti um desespero para falar logo, antes que ele mudasse de assunto.

- É uma menina do terceiro ano. Parece que ela gosta de um cara mais velho, um babaca completo. Você já reparou como as garotas sempre gostam do tipo errado? Que merda é essa que acontece?

- O que aconteceu com o mantra que eu havia te ensinado? “Mais velhas, não... mais velhas, não”, você deveria repetir isso em casa, queimando alguns incensos e sentado em posição de lótus. Cara, na sua idade, mais velhas simplesmente não funcionam. Quem sabe, um dia, mas, definitivamente, não agora.

- O que você sabe sobre isso? Você nem é real – rebati com a voz meio falha pela fumaça.

Ele riu.

- Oooww! Pegou pesado, hein! Eu adoro você, sabia, principalmente, quando está emputecido desse jeito.

- Talvez eu seja do “tipo errado” também.

- Eu não apostaria, os caras do tipo errado jamais teriam este tipo de conflito.

- Bem, que se foda. Eu nem gosto tanto dela assim mesmo... A gente nunca trocou uma palavra sequer. Só achei bonito o jeito como ela tirava o esmalte das unhas um dia num banco do refeitório, completamente compenetrada na tarefa, como se aquilo tivesse um valor absurdo. E eu nunca fui de reparar nas unhas das mulheres, mas parece que o valor que ela dava pra coisa, de certa forma, me fascinou também. E agora a primeira coisa que olho é pras mãos delas.

- É, o mistério que nos fascina. Tem tocado?

- Quase nada – respondi com preguiça, este assunto me frustrava –, perda  de tempo... meu pai acha que vou me tornar um fracassado completo se continuar insistindo nisso.

- Ele te disse isso?

- Não, nem precisa, pelo jeito como ele me olha, dá pra sacar.

- Você adivinha olhares agora? Pergunta pra ele, único jeito de saber.

Eu ri e balancei a cabeça.

- O que foi? – perguntou com ar de espanto.

Ignorei ele, dei mais uma tragada e mantive o riso nos lábios. Me sentia melhor e até o cigarro não parecia tão ruim.

- Qual foi a piada? Compartilha, também quero rir... – o sujeito exalava curiosidade.

- Você e essas suas porcarias de conselhos... Lembra aquela vez que você me disse que eu deveria falar pro professor de química que os pêlos da orelha dele geravam desconforto nas pessoas e que os outros zoavam ele por causa disso.

O desgraçado começou a rachar de rir ao meu lado. Não agüentei e ri também:

- Foda-se você e os seus conselhos – falei.

- A história não é bem assim, eu disse que seria honesto de sua parte falar pra ele. Não tenho culpa se ele não estava preparado pra ouvir a verdade.

Ficamos um tempo quietos, eu com os olhos voltados para o chão olhando algumas formigas que carregavam folhas num complexo sistema de trânsito e sempre paravam antes de se chocarem quando uma estava indo de encontro a outra, como costumam fazer. Enquanto isso, esperava o resto do cigarro queimar sozinho, estava um pouco tonto, mesmo assim não queria jogá-lo fora pela metade porque tinha certeza que o meu amigo iria notar, provavelmente não diria nada, mas com certeza iria notar. Ele olhava para frente com os olhos um pouco inclinados para o alto, em direção a dois pombos parados sobre os fios de alta tensão estendidos de um poste a outro.

- Pousados despreocupadamente sobre trocentos mil volts e nada acontece com eles... como se estivessem sobre um inofensivo varal. Pra que haja corrente, é preciso haver diferença de potencial elétrico, o que só aconteceria se eles tocassem um outro objeto que não o próprio fio. Nós poderíamos andar dependurado num fio desses e não aconteceria porra nenhuma. Agora, bastaria uma leve esbarrada no poste ou num galho de árvore...

- Não sabia dessa, anda estudando física agora?

- Pássaros... – murmurou.

- Eu até gosto de exatas, de verdade mesmo. O problema são os professores dessas disciplinas... um bando de nerd enrustido que sempre foram massacrados na escola, depois, querem compensar, bancando os fodões pra cima dos alunos. Eles realmente sentem prazer quando você não entende algo e eles podem mostrar o quanto são superiores. E a sensação que eu tenho é que, às vezes, eles têm medo de que possam ser superados. E nas provas, sempre colocam alguma questão que envolve algum tipo de macete idiota, ou alguma variação de uma fórmula que você precisa deduzir, só pra depois te dizerem “muito bem, campeão, você está quase lá, só faltou este truquezinho aqui”. Fodam-se eles.

- Quanta amargura! – ele disse sorrindo. – Parece que você não escolheu o caminho mais seco até aqui – comentou olhando para os meus pés. – Queria saber quem vai ter que desencardir estes cadarços...

- Sei lá, a máquina de lavar ou coisa que o valha...

- Vê-se logo que você é um perito em questões domésticas. Cadarços não são o tipo de coisa que você simplesmente enfia numa porcaria de uma máquina e deixa que ela faça o trabalho por você, enquanto desfruta de um chocolate quente.

- Não sou muito fã de chocolate quente. Prefiro café com leite.

- E o tênis? Vai colocar na máquina também – ele estava esbanjando ironia.

- Engraçado você perguntar isso, eu estava pensando seriamente em pedir pra sua mãe lavá-los pra mim. Nossa, curioso mesmo! Justamente quando eu estava pensando, acho que a mãezinha do meu amigo safado adoraria esfregar estes tênis.

- Hoje você está pegando pesado mesmo...

- Qual é? Você nem é real... vai dizer que você tem uma mãe imaginária também?

- Cala a boca – falou sem se abalar.

O cachorro que estava girando atrás do rabo quando eu cheguei à praça se aproximou da gente, com aquela euforia típica dos cães que sempre me causam um certo espanto simplesmente por constatar que existe uma criatura no mundo que tem tanta energia e empolgação.

- E aí, campeão, o que você conta, meu herói? – ele falou com o cachorro com uma euforia equivalente. – O que você tem aí, hein? Um osso, seu malandro? Eu apostaria que você tinha qualquer coisa, menos um osso... vejam só, o danado tem um osso.

O cão começou a latir sem parar, como se estivesse desfrutando daquela interação excêntrica.

- O quê? Eu não acredito, te deram um osso sintético?! – dava pra sentir uma indignação sincera na voz dele. – Porra, que tipo de dono sacana que você tem? Mas não esquenta, amanhã eu trago um osso pra você, completamente orgânico, o osso mais orgânico que você já roeu em toda sua vida canina..
- Meu Deus, será que você pode calar a boca?

- Este sujeito aqui? – continuou ele na conversa com o cão – Este é um velho camarada meu...

O cachorro continuou latindo.

- Não, amigão, não precisa pegar tão pesado com ele assim... Ele só está um pouco chateado, mas é boa pessoa... você tem alguma mensagem pra passar pra ele?

Foi então que ele começou a traduzir os latidos do cachorro:

“Olá, príncipe dos balanços! Envio-lhe saudações da espécie cannis lupus famliaris...”

Fiz menção de levantar do balanço:

- Pra mim, já deu. Não vou ficar aqui ouvindo esta merda...

O cachorro veio em minha direção e tive a impressão de que rosnou pra mim. Nunca tive essa afinidade toda com cães e, por via das dúvidas, achei melhor ficar na minha até que aquela pataquada toda acabasse. Ele continuou com a tal tradução:

“Senta-te, pequeno príncipe Homo Sapiens Sapiens, e escuta a mensagem: Não aflijas teu nobre, jovial, polivalente...”

- Puta que pariu – balbuciei.

“... cosmopolita e contra-dogmático coração... e saiba que a vida é como um osso...”

- Ai, não...

- ... muito prazerosa, mas também pode ser dura de roer”.

Olhei-o atônito, enquanto ele se esbaldava num pequeno acesso de riso. Não resisti e acabei rindo um pouco também.

- Não acredito que você realmente mandou este trocadilho horrível.

- Não fui eu, foi o nosso amigo aqui. Não é que o safado é espirituoso. Não é, campeão? – desceu do balanço e começou a afagar o cachorro que agora estava em êxtase.

Um assobio ao longe e nosso inesperado companheiro deixou a cena.

- Eu preciso ir pra casa – falei. – Prova de matemática amanhã. Duvido que consiga estudar, mas...

- Ei, o que está acontecendo afinal?

Suspirei. Não estava só fazendo cena, realmente não sabia se queria falar, na verdade, nem sabia direito o que falar:

- Sei lá... tenho andado meio triste, eu acho. Uma tristeza morna, quase confortável, que parece grudada em mim, como um carrapato que vem aumentando aos poucos a cada dia que passa. E... tenho me sentido sozinho também, finjo que prefiro assim, mas, no fundo, não prefiro não...

- Hum, você deveria tentar fazer alguns amigos, amigos assim como você, não como eu.

- Eu tentei, mas eles não querem.

- Como você sabe, pelo olhar deles? Eu já te falei você...

- Eu perguntei, droga, não diretamente, tipo “oi, vamos ser amigos?”. Simplesmente me ignoraram – senti uma certa autopiedade em minha voz que me irritou.

- Você deve ter tentado com as pessoas erradas.

Silêncio por alguns momentos, pensei em acender outro cigarro. Acabei só olhando pra chama do isqueiro acesa. Ele disse:

- Olha só, eu não quero te dar nenhuma lição de moral, nem bancar o conselheiro e nem nada do gênero, mas acho que o grande problema é este seu narcisismo, egocentrismo ou algo que o valha.

- Me poupe...

- É sério, você acha que está sempre no centro das atenções, que as pessoas estão reparando em tudo que você faz, prontas pra te criticar, pra te julgar por qualquer deslize, como se todos os olhos estivessem voltados pra você. E elas estão cagando pra qualquer coisa que não seja o próprio umbigo, chefe, isso eu te digo! Relaxa... sempre tem algum escroto pra te apontar o dedo se as coisas não saírem certo, mas 5 minutos depois ele nem vai lembrar que você existe. E, sabe do que mais, fodam-se essas pessoas que ficam procurando os teus erros. Você não pode viver tua vida inteira como se fosse a porcaria de um chefe de estado no meio de uma conferência diplomática, medindo palavras e gestos como se qualquer ato em falso fosse desencadear a 3ª Guerra Mundial, ou algo do tipo. Você precisa fazer um pouco mais aquilo que você tem vontade. Descobrir o que você quer e simplesmente fazer, ao menos de vez em quando. Se não, campeão, a carga fica pesada demais... e até pode parecer bonito ser o sujeito que carrega a carga pesada e tal, mas, se você não ficar atento, uma hora ou outra essa coisa te esmaga sem você nem se dar conta. Como a tal história do carrapato...

- Eu realmente não sei de onde você tira essas merdas.

- Tudo bem, ninguém gosta quando a coisa toda é jogada assim... Só pense a respeito, não hoje e, quem sabe, nem amanhã... mas quando isso que eu te falei voltar à sua cabeça, procure simplesmente não ignorar.

- Bem, tanto faz, eu tenho que ir... Eu só preciso de meias secas, um banho quente, talvez uma xícara de café e as coisas vão ficar bem. As coisas vão ficar bem... Te vejo amanhã.

- Eu não vou estar aqui amanhã.

- Você sempre diz isso – rebati.

Me segurei na corrente da balança para dar um impulso para levanatar e percebi que a minha perna esquerda estava amortecida, quase caí sentado.

- Droga – disse batendo na perna pra tentar fazer o sangue circular.

Meus pés estavam congelando e eu não sentia direito meus dedos. Seria realmente agradável colocar um outro par de meias e enfiá-los debaixo das cobertas. Percebi que não havia a menor chance de eu estudar para a prova. Definitivamente, não. Fui me afastando dos balanços ainda mancando um pouco, gosto de respirar este ar úmido e frio, logo depois de uma chuva no inverno. Parece mais limpo.

- Ei, campeão!

Me virei. Ele continuava sentado no balanço.

- Eu estive pensando – ele continuou –, não sei se isso já te ocorreu... mas, e se for você quem não é real?

Aquilo me acertou como um tiro. A minha loucura devia estar piorando.

- E se... – falei enquanto tirava o maço de cigarros do bolso – e se nenhum de nós dois formos reais.

- O que aconteceria? Simplesmente desapareceríamos, de uma hora pra outra?

- No final das contas, não é o que acontece? Não seria tão ruim, não é verdade? – acendi o cigarro e a tragada pareceu esquentar meu pulmão, isso fez com que me sentisse real novamente.

Ele sorriu e só então me dei conta de que ele era um tipo que sorria bastante.

- Você não tem jeito mesmo - falou balançando a cabeça.

Voltei pra casa caminhando como quem dá uma volta para matar o tempo. Joguei fora meu cigarro ainda pela metade. Caminhei mais um pouco e, como que por intuição, olhei pra cima. Havia um pombo pousado, sozinho, sobre um fio de alta tensão. 

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