sábado, 22 de novembro de 2008

If you wouldn't mind, I'd like it blew

Era um controlador de estoque. Pouca instrução formal. Poucas atividades de lazer. Pouca remuneração. Do tipo que idolatra o chefe e qualquer pessoa que possua algum tipo de título, ou que use um sapato bem lustrado. Um dia percebe um pequeno caroço na axila. Vai ao médico. Duas semanas depois, pega o resultado do exame. Tumor maligno. Submete-se a uma nova bateria de testes. Duas semanas depois, retorna ao hospital.

- Sinto lhe informar, mas o seu prognóstico não é nada bom _ diz o médico.

- Eu vou morrer, doutor? É isso?

- É difícil dizer isso, mas eu trabalho com a verdade. O câncer está espalhado pelo seu corpo e, nesse caso, não há muito que a medicina possa fazer. Sempre há possibilidades... mas as chances são remotas.

- Por favor, doutor, seja franco. Quanto tempo de vida me resta?

- Eu diria uns seis meses...

- Ainda bem... mês que vem eu preciso entregar o balanço anual do estoque.

Interpretação I: Trata-se de um personagem que abriu mão de sua subjetividade em função de uma burocratização altamente coerciva imposta aos sujeitos que compõem a sociedade contemporânea. Percebe-se nitidamente uma alienação kafkaniana.

Interpretação paralela (e mais legal): Foda-se esse personagem estúpido, o Woody Allen, as bandas cults, os intelectuais e os pseudo-intelectuais.

sábado, 15 de novembro de 2008

Só isso?

Personagem: Ser um personagem não é tão ruim assim, apesar de estar a sua mercê.

Escritor: Ser um escritor não é lá nenhuma maravilha, apesar de te controlar. Me lembra um pouco um teatro de ventríloquo.

Personagem: Vocês escritores são quase todos iguais...

Escritor: Como assim?

Personagem: Você sabe melhor do que eu; se não, eu não saberia.

Escritor: Talvez você tenha razão. Mas eu quero que você fale, então, creio que você não tem escolha...

Personagem: Neste ponto você me pegou. Se é assim que você quer, então, vamos lá. Vocês, escritores, são arrogantes, metidos a intelectuais, bancam os excêntricos, se intrometem em vários assuntos, mas não conhecem nada a fundo. E, o pior, são muito chatos.

Escritor: Bem, se você diz isso, logo, no final das contas, creio que eu concordo com você. Mas não é só culpa nossa. A literatura em si é velha e chata. Com toda a sua pose, orgulha-se de seu ridículo status de arte para poucos. E nós, que a alimentamos... bem.... nós não tivemos escolha. Se fossemos bons em alguma outra coisa, não precisaríamos escrever. Você sabe como é difícil admitir isso, principalmente pela arrogância, que você mesmo apontou.

Personagem: Concordo com você. A literatura é velha, chata e procura ostentar um glamour que chega a ser caricato. Maquia-se como uma prostituta para ir à igreja. E é tão deprimente ser um personagem, e acabar usando essas suas analogias baratas, e sentir, a cada palavra que eu profiro, como se eu tivesse vivido cem anos de uma vida amargurada. E sentir que nisso que acabei de dizer existe uma dose cavalar de autopiedade.

Escritor: Acho que eu te compreendo melhor do que ninguém, e vice-versa. Mas o que podemos fazer? Já que não estou me valendo de um diálogo retórico, acredito que você também não tenha a resposta; caso o contrário, eu também a saberia.

Personagem: Você disse que a literatura é uma saída quando não se é bom em outra coisa. Mas, e quando não se é bom nem mesmo na literatura, por que continuar insistindo?

O personagem estúpido e intrometido cai morto.

domingo, 9 de novembro de 2008

INSIGHT

Eles costumavam proclamar o fim do mundo. Nas igrejas e nas ruas. Um cometa. Aquecimento global. Aids. Gripe do frango. Os cavaleiros do apocalipse. Anjos, trombetas, e não sai o que mais. Sempre gostaram de glamour. Atos grandiosos, apesar do dia-a-dia sempre provar o contrário. Passeio no parque com a namorada. Brincar com os filhos. Acampamento com os amigos. Engraçado, até entendo um pouco de álgebra. O apocalipse veio, e eu tive muito a ver com isso. Talvez risse ou chorasse, se pudesse. Isso tudo é muito irônico. Posso perceber. Isso tudo é muito engraçado. Talvez dissessem. Não posso perceber. Nasci com um problema no lobo frontal. Repare em como sempre interagiram tão bem, todos eles. Repare em como estou isolado no canto, torcendo para ser invisível. Não sinta pena. Ser ignorado me deixaria feliz, se meu lobo frontal fosse normal. Não sinta pena, eu não posso sentir pena de você, nem de mim, nem de todos os outros que se foram por minha causa. O bom disso tudo é que não posso me sentir culpado. Sinto algumas coisas, mais relacionadas à percepção propriamente. Meu paladar é muito apurado, talvez pra compensar a falta de emoções. Mas não gosto daquela merda de comida refinada. Eu mataria por Doritos. Não estou brincando. Sei que deve parecer estranho pra você, mas mataria mesmo. Não sentiria remorso, simplesmente porque não posso sentir. Sei que deve parecer inconcebível pra você, mas, pra mim, um pacote de Doritos vale muito mais que meu colega de trabalho, ou meu colega de classe. Todos costumavam rir dos programas de auditório. Costumavam rir de mim. Não sentia raiva. Não sentia nada. Às vezes, queria ter medo. Queria ficar ansioso antes de falar em público. Queria me sentir feliz quando elogiado. Queria gostar mais dos membros da minha família do que de comer tacos. Mexicanos safados. Eu mataria por tacos. Por que nunca o fiz? Porque eu seria preso e dizem que a comida na cadeia é uma droga. Você deve estar se perguntando o que isso tudo tem a ver com o apocalipse. Vocês todos são tão chatos e iguais. Suas perguntas e prioridades são tão chatas e iguais. Se eu pudesse, sentiria raiva de vocês. Se pudesse, riria também enquanto a maioria de vocês se contorcia ao chão, gargalhando até a morte. No começo isso tudo foi tão estranho, ver aquele olhar de desespero, enquanto a boca insistia em mostrar os dentes. Risos. O diafragma devia doer. Risos. Os músculos faciais deviam doer. Risos. O cérebro em desespero clamando por oxigênio. Risos. Uma noite aleatória sonho com esta frase. Não tem nenhum sentido para mim. Saio para o trabalho e vou almoçar com essa porcaria martelando em minha cabeça. Um cara, que trabalha na mesma sessão em que eu, está dividindo a mesa comigo. O jeito como ele mastiga, de alguma forma, reduz meu apetite. Ofegante, tritura e engole. Não sabe apreciar a droga da comida; se pudesse, aposto que engoliria o alimento inteiro. Quase nunca puxo conversa. Há exceções. Pergunto se já sonhou com uma frase. Ele diz que não. Lembro de um navio. Havia uma porcaria de um navio no sonho. O céu estava escuro. Tempestade. Um velho marinheiro. Dentes de ouro. Será que vou receber a droga do aumento? Queria alugar um apartamento mais alto, a merda dos carros não param de passar a noite toda. Um velho marinheiro. Dentes de ouro. Um papagaio ao ombro. O papagaio diz a tal frase. Meu colega não está ouvindo porra nenhuma do que estou falando. Tritura e engole. Conto a frase. Ele arregala os olhos por um momento, então a catarse. O clímax. O êxtase. O orgasmo. As primeiras gargalhadas saem altas. Agora está caído ao chão. Se contorce. Parece um ataque epilético. Ouço o riso ficando mais baixo. Não posso vê-lo de onde estou sentado, a mesa encobre a visão. Alguém está o socorrendo. Há pavor nos rostos. Estou comendo meu bife a parmegiana com purê de batatas. A carne é mais macia enquanto quente. Não ouço mais risos e todos me olham e me questionam. Olhares acusadores. Não direi nada até acabar minha refeição. Não vou apressar meu ritmo. Pronto. Posso responder. Não sei o que houve. Arroto. Ele não sabia nem comer. Contei um sonho estúpido. Por que vocês têm que ser tão chatos? Falo do marujo. Da tempestade. Do papagaio idiota. Digo a frase. Sou o anjo do apocalipse. Todos tombam ao chão se contorcendo em risos. Que cena bizarra. Minha trombeta anunciando o fim dos tempos é uma frase estúpida dita por um papagaio num sonho. Uma vez, morei perto da casa de uma velha que ensinava palavrões para o seu papagaio. Nunca tive animais de estimação. Talvez seja por isso que não sou casado, se é que você me entende. O episódio mexe comigo. Se eu fosse visitar minha família, talvez ainda pegasse todos reunidos à mesa. Frango. Salada. Macarrão. Irmãos. Pai. Mãe. Tia. Falar ou não falar? Alguém pergunta se ainda estou solteiro. Alguém pergunta se ainda estou no mesmo cargo. Alguém pergunta se não quero salada. Eu já tenho salada no meu prato. Não me contenho. Não que tenham realmente me deixado irritado. De qualquer forma, sei que, se eu pudesse me irritar, aquilo me irritaria. Conto que tive um sonho estranho. Talvez essa seja pelo Complexo de Édipo. Falo de um velho marinheiro com dentes de ouro. Talvez seja por ter que comer verduras antes da sobremesa. Falo de um papagaio idiota que ele trazia ao ombro. Talvez seja por ter que estar sempre arrumadinho, como a droga do coroinha do ano. Falo sobre o céu escuro... tempestade. Talvez por sempre ter que esperar que alguém use o banheiro... e cague fedido. Conto a frase estúpida dita pelo papagaio. Talvez por nunca ter sentido raiva disso tudo. Risos. Um quadro estranho. Soa como se eu estivesse integrado. Como se tivesse contado uma piada. Uma anedota engraçada como todos fazem. Algo divertido como nunca fiz. Mas ninguém vai me dar um tapinha nas costas. Ninguém vai me dar parabéns pela piada. Ninguém vai passar aquela frase idiota adiante numa reunião de amigos. Ninguém vai sair vivo da cozinha. Barulhos contínuos atrapalham meu apetite e minha digestão. Espero os risos cessarem e pego um frango empanado. Uma última oportunidade. Minha mãe fazia frango empanado como ninguém. Poder. Sinto-me entorpecido de alguma forma. Todos parecem tão frágeis agora. Como se tivesse que cuidar para não pisar neles. Para não esmagá-los sem querer. Uma distração e poderia deixar a frase escapar na fila do supermercado. A polícia vem a minha casa pedindo um depoimento a respeito das mortes. Eles não vão querer saber. Digo a frase. Semeio a morte. A TV local me procura. Digo que só dou declaração se for ao vivo. Terrorismo. Assassinato em massa sem alvo definido. A repórter era bonita. Alguma parte de mim considera aquilo um desperdício. O que houve afinal, ela pergunta. Imagino os telespectadores em casa. Jantando com a família. Tomando uma cerveja após um dia duro de trabalho. TV ligada enquanto acaba a lição de casa ou um relatório. Ouvindo o telejornal enquanto estão cagando. Ouvindo a droga do noticiário enquanto estão fazendo sexo. Enquanto cortam cenouras em rodelas para preparar uma sopa que jamais será acabada. Essa era uma vantagem de se morar numa metrópole. As possibilidades eram diversas e eu jamais iria conseguir supor todas elas. Imaginei-me visitando as casas no dia seguinte, tentando descobrir o que faziam quando ouviram a frase. Soava como um bom passatempo. Senhor... o que houve afinal, insiste a repórter. Adeus, jovem repórter. Adeus, caros telespectadores. Pulo a parte do velho marujo. Do papagaio idiota. Digo direto a frase. Deixo para trás a repórter e o câmera se debatendo no chão. Vou para casa. Estou cansado. Você deve estar curioso para saber que frase é essa. Você quer saber? Aposto que você morreria de rir. Será que acabei de fazer uma piada? Será que foi engraçado? Será que foi engraçado? Bem, que diferença faz.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Horário de Almoço

Ele sai do trabalho meio-dia em ponto. Não está faminto, mas o almoço cairia bem. Os carros passam continuamente. Ele espera o semáforo fechar e atravessa a rua. Segue seu caminho até chegar à próxima esquina. Há uma faixa de pedestre; supostamente, ele teria a preferência. Mas há uma linha imensa de carros que não param de passar numa velocidade relativamente alta, ignorando-lhe a presença. Ele espera por alguns minutos. Se houvesse algum carro indo na mesma direção que ele; se algum carro viesse para atravessar aquela rua, então, os outros teriam que dar a preferência. Então, aquela linha metálica contínua seria interrompida. Mas, não, um mero pedestre não poderia interrompê-la. Mas, não. Não veio nenhum carro ao seu socorro. Diante de sua impotência, resolveu voltar ao trabalho e esperar que o horário de almoço chegasse ao fim para recomeçar suas tarefas. No entanto, não se sentia revoltado. Afinal, talvez não tivesse mesmo o direito de comer.