sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Ostra Vazia

Tenho a impressão de que minha visão fica um pouco turva enquanto subo as escadas. Mas não detenho o passo. O cheiro de éter deste lugar, aliado ao jejum, embrulha-me o estomago. Continuo subindo. Como estou ansioso para encontrá-la e, ao mesmo tempo, com medo. Covarde. Estas paredes brancas impecáveis... este silêncio, sinto-me como se estivesse entrando em seu templo. Meu Deus, o que eu devo dizer? Sinto-me tão ridículo nesta situação.

Acabado o último lance de escadas (tão rápido! Fiz de tudo para demorar ao máximo), avisto-a, de costas, olhando pela janela. Tenho a estranha sensação de que ela sabe que estou ali, mas, de qualquer forma, isso não lhe causa a mínima perturbação. Percebo o quanto a amo, o quanto preciso dela para existir. E tudo desaba sobre mim de uma vez só. O estomago vazio... o éter... as lembranças... os arrependimentos... as fantasias... e ela parada ali, vestes brancas, numa fragilidade quase santa. A experiência tem ares místicos. Como um ator que sabe seu papel, avanço em sua direção. Suores e arrepios pela minha pele. Vontade de fugir. Paro ao lado dela. Penso em me ajoelhar. Poupo exageros absurdos e sinto vergonha por ter pensado nisso. Ela permanece inabalável, olhar perdido por aquela paisagem simplória.

“Quando estava vindo pra cá... Não, foi ontem à noite... Não consegui dormir nada esta noite, você sabe, minha insônia... Então comecei a pensar estas coisas e não consegui tirar isso da cabeça enquanto vinha pra cá. O quanto isso tudo está fora do meu controle. Sempre quis que tudo estivesse em minhas mãos, mas nunca esteve e nunca estará. O número de coisas que independe de minha vontade me assusta... e me encanta ao mesmo tempo. Lá fora, quantos frutos podres estão caindo ao chão, quantas árvores estão nascendo, quantas pessoas estão morrendo... Não sei se entende o que estou querendo dizer, o próprio planeta girando, meu coração pulsando, nem mesmo meu coração depende de minha vontade. E isso, isso parece tão absurdo. Não sei se aos outros parece estranho também, mas sinto como se quase não pudesse viver com isso; apesar de ter vivido até então. Parece que, agora, que me dei conta, não posso mais suportar”.

“Não há lugar para sua poesia ou seus devaneios aqui”, disse ela sem me dirigir o olhar.

“Se eu soubesse o que você deseja ouvir, seria exatamente isso que eu diria. Será que, pelo menos, você sabe disso? Sabe que isso é a coisa mais sincera que posso dizer?”

“Talvez você não devesse dizer nada. Talvez devesse ficar calado”.

“Você sabe como eu sou, sabe que eu poderia ficar anos calado; mas, por favor, não me peça isso hoje... não agora. Talvez... talvez eu deva partir. É isso?”

“Seria mais fácil, não é? Você deveria ficar, mas faça o que bem entender”.

“Tem algo que eu possa fazer? Tem algo que eu possa oferecer? Talvez minhas vísceras... meu sangue... meu coração?”

“Eu não conheço você”

“Não diga isso. Por que você tem que me dizer isso? Já não basta...”

“Sente-se. Espere. E não se atreva a me pedir perdão”.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Caçando estrelas e vaga-lumes

Lançamento em 5, 4, 3, 2, 1... O espaço é tão bonito que me sinto bem por ser pequeno. É uma mistura estranha de paz e saudade. O que é real e o que não é? Eu estou mesmo vivo? A visão das estrelas dispostas no escuro vazio parece ser mais do que eu mereço. Uma parte besta de mim tem essa estranha sensação de estar voltando pra casa. Talvez não seja besteira, talvez tenha algo a ver com meus átomos, que um dia estiveram no interior dessas gigantes luminosas. A impressão é de que eles querem me abandonar e retornar às suas origens... como se a qualquer momento meu corpo fosse dissolver como uma escultura de areia perante um vendaval. E isso não me assusta, pelo contrário, me deixa extasiado. Não é o fim, pois, se o fim existe em algum sentido, agora está tão distante que nem posso o vislumbrar. A maioria desses pontos luminosos que vejo possuem alguns bilhões de anos de idade. Me sinto minúsculo e me sinto confortado por isso, por haver algo tão maior. Brilham... os vaga-lumes espalham-se pulsando pelo final da tarde. Corro entre eles, tentando apanhar algum com as mãos. Se o apanho, admiro-o por alguns instantes e depois o liberto. Tenho medo que ele morra; tenho medo que o fim chegue para tudo isso que aí está. Ele pode voar e brilhar, e isso é incrível. Não me sinto sozinho entre eles. E quando a noite chega deito e olho pra cima. E passo horas admirando aquilo que sempre foi o que mais me deixou intrigado; como pode minha pequena consciência tentar conceber a idéia de infinito? Como pode nunca haver tido um início e nunca ter um fim? Não desejo glória, riqueza ou vida eterna... só quero duas ou três respostas que mesmo na infância sei que nunca terei. Os pequenos pedaços de estrelas uniram-se de formas variadas até chegarem ao estágio em que se perguntam o que são e como surgiram... incontáveis eventos coincidentes levaram a isso. Minha roupa está molhada pelo orvalho, minhas pálpebras estão pesando e me pergunto se alguma outra vida inteligente talvez não estaria olhando em minha direção, fazendo as mesmas perguntas. Apesar de ser criança, sei que isso seria muita coincidência, mas o universo e mesmo minha própria vida são a prova de que as coincidências mais absurdas sempre ocorreram. A ironia que me deixa triste é que sei que se existe alguém muito, muito distante, que faz as mesmas perguntas que eu olhando para o céu, jamais iremos nos comunicar. O espaço é tão vasto que sinto vontade de chorar. Estava errado em minha suposição. E estou navegando entre as estrelas rumo àqueles que se perguntaram as mesmas coisas que eu; estou navegando em direção às respostas. Duas ou três respostas que são o significado de minha existência. A ironia do universo se mostra outra vez. Como o tempo é relativo, a viagem que dura alguns anos para mim, dura alguns milhares para a minha civilização, portanto, apenas um, apenas eu terei as respostas para as perguntas. Nunca mais verei minha família, meu cachorro, os vaga-lumes... nunca mais verei nenhum ser humano. Mas aquilo que a união destes átomos que formam meu corpo, como se fosse um vasto universo de elétrons orbitando prótons, tudo que essa união de pequenos sistemas mais quer é saber como ela surgiu. A esta velocidade as estrelas não são mais pontos luminosos no céu. É impossível saber se aquilo que meu cérebro pensa é passado, presente ou futuro. Talvez delírio. A noção de tempo se perderia sem o sol como referência... mas tenho vários instrumentos me dizendo que estou viajando há 12 anos, 6 meses, 11 dias, 14 horas e 32 minutos. Vejo um planeta que deve ser 1,7 vezes maior do que meu planeta natal. Também se mostra a princípio azul, devido à água em estado líquido. Os pára-quedas de minha nave se abrem automaticamente quando entro em contato com a atmosfera. As porções de terra se mostram verde e marrom-avermelhado devido a uma suposta vegetação que avisto. Quando estou mais próximo, percebo enormes construções feitas de um material que parece um tipo de vidro ou cristal azulado. Avisto os dois sóis ao horizonte, não sei se estão nascendo ou se pondo. Caio numa vasta porção de água. Acordo com os seres nativos inteligentes ao meu redor. É um feito tão inacreditável que chego a me questionar se existe a mínima possibilidade daquilo ser real. Suas feições são mais familiares do que eu havia imaginado. Estou em algum local apropriado para que minha saúde seja tratada e me sinto incrivelmente bem. Logo recordo que eles conhecem minha cultura e minha língua devido às ondas eletromagnéticas emitidas no espaço pelos satélites da Terra. Compreendem perfeitamente aquilo que digo e posso compreendê-los com igual precisão. Então, o representante deles me diz: “O senhor precisa descansar agora, Mensageiro, mas saiba que estamos ansiosos pelas respostas que trouxe para nossas perguntas milenares”. A ironia do universo. Me sinto perseguindo vaga-lumes que nunca estiveram lá; mas, no fundo, sei que esta foi minha melhor escolha.

sábado, 22 de novembro de 2008

If you wouldn't mind, I'd like it blew

Era um controlador de estoque. Pouca instrução formal. Poucas atividades de lazer. Pouca remuneração. Do tipo que idolatra o chefe e qualquer pessoa que possua algum tipo de título, ou que use um sapato bem lustrado. Um dia percebe um pequeno caroço na axila. Vai ao médico. Duas semanas depois, pega o resultado do exame. Tumor maligno. Submete-se a uma nova bateria de testes. Duas semanas depois, retorna ao hospital.

- Sinto lhe informar, mas o seu prognóstico não é nada bom _ diz o médico.

- Eu vou morrer, doutor? É isso?

- É difícil dizer isso, mas eu trabalho com a verdade. O câncer está espalhado pelo seu corpo e, nesse caso, não há muito que a medicina possa fazer. Sempre há possibilidades... mas as chances são remotas.

- Por favor, doutor, seja franco. Quanto tempo de vida me resta?

- Eu diria uns seis meses...

- Ainda bem... mês que vem eu preciso entregar o balanço anual do estoque.

Interpretação I: Trata-se de um personagem que abriu mão de sua subjetividade em função de uma burocratização altamente coerciva imposta aos sujeitos que compõem a sociedade contemporânea. Percebe-se nitidamente uma alienação kafkaniana.

Interpretação paralela (e mais legal): Foda-se esse personagem estúpido, o Woody Allen, as bandas cults, os intelectuais e os pseudo-intelectuais.

sábado, 15 de novembro de 2008

Só isso?

Personagem: Ser um personagem não é tão ruim assim, apesar de estar a sua mercê.

Escritor: Ser um escritor não é lá nenhuma maravilha, apesar de te controlar. Me lembra um pouco um teatro de ventríloquo.

Personagem: Vocês escritores são quase todos iguais...

Escritor: Como assim?

Personagem: Você sabe melhor do que eu; se não, eu não saberia.

Escritor: Talvez você tenha razão. Mas eu quero que você fale, então, creio que você não tem escolha...

Personagem: Neste ponto você me pegou. Se é assim que você quer, então, vamos lá. Vocês, escritores, são arrogantes, metidos a intelectuais, bancam os excêntricos, se intrometem em vários assuntos, mas não conhecem nada a fundo. E, o pior, são muito chatos.

Escritor: Bem, se você diz isso, logo, no final das contas, creio que eu concordo com você. Mas não é só culpa nossa. A literatura em si é velha e chata. Com toda a sua pose, orgulha-se de seu ridículo status de arte para poucos. E nós, que a alimentamos... bem.... nós não tivemos escolha. Se fossemos bons em alguma outra coisa, não precisaríamos escrever. Você sabe como é difícil admitir isso, principalmente pela arrogância, que você mesmo apontou.

Personagem: Concordo com você. A literatura é velha, chata e procura ostentar um glamour que chega a ser caricato. Maquia-se como uma prostituta para ir à igreja. E é tão deprimente ser um personagem, e acabar usando essas suas analogias baratas, e sentir, a cada palavra que eu profiro, como se eu tivesse vivido cem anos de uma vida amargurada. E sentir que nisso que acabei de dizer existe uma dose cavalar de autopiedade.

Escritor: Acho que eu te compreendo melhor do que ninguém, e vice-versa. Mas o que podemos fazer? Já que não estou me valendo de um diálogo retórico, acredito que você também não tenha a resposta; caso o contrário, eu também a saberia.

Personagem: Você disse que a literatura é uma saída quando não se é bom em outra coisa. Mas, e quando não se é bom nem mesmo na literatura, por que continuar insistindo?

O personagem estúpido e intrometido cai morto.

domingo, 9 de novembro de 2008

INSIGHT

Eles costumavam proclamar o fim do mundo. Nas igrejas e nas ruas. Um cometa. Aquecimento global. Aids. Gripe do frango. Os cavaleiros do apocalipse. Anjos, trombetas, e não sai o que mais. Sempre gostaram de glamour. Atos grandiosos, apesar do dia-a-dia sempre provar o contrário. Passeio no parque com a namorada. Brincar com os filhos. Acampamento com os amigos. Engraçado, até entendo um pouco de álgebra. O apocalipse veio, e eu tive muito a ver com isso. Talvez risse ou chorasse, se pudesse. Isso tudo é muito irônico. Posso perceber. Isso tudo é muito engraçado. Talvez dissessem. Não posso perceber. Nasci com um problema no lobo frontal. Repare em como sempre interagiram tão bem, todos eles. Repare em como estou isolado no canto, torcendo para ser invisível. Não sinta pena. Ser ignorado me deixaria feliz, se meu lobo frontal fosse normal. Não sinta pena, eu não posso sentir pena de você, nem de mim, nem de todos os outros que se foram por minha causa. O bom disso tudo é que não posso me sentir culpado. Sinto algumas coisas, mais relacionadas à percepção propriamente. Meu paladar é muito apurado, talvez pra compensar a falta de emoções. Mas não gosto daquela merda de comida refinada. Eu mataria por Doritos. Não estou brincando. Sei que deve parecer estranho pra você, mas mataria mesmo. Não sentiria remorso, simplesmente porque não posso sentir. Sei que deve parecer inconcebível pra você, mas, pra mim, um pacote de Doritos vale muito mais que meu colega de trabalho, ou meu colega de classe. Todos costumavam rir dos programas de auditório. Costumavam rir de mim. Não sentia raiva. Não sentia nada. Às vezes, queria ter medo. Queria ficar ansioso antes de falar em público. Queria me sentir feliz quando elogiado. Queria gostar mais dos membros da minha família do que de comer tacos. Mexicanos safados. Eu mataria por tacos. Por que nunca o fiz? Porque eu seria preso e dizem que a comida na cadeia é uma droga. Você deve estar se perguntando o que isso tudo tem a ver com o apocalipse. Vocês todos são tão chatos e iguais. Suas perguntas e prioridades são tão chatas e iguais. Se eu pudesse, sentiria raiva de vocês. Se pudesse, riria também enquanto a maioria de vocês se contorcia ao chão, gargalhando até a morte. No começo isso tudo foi tão estranho, ver aquele olhar de desespero, enquanto a boca insistia em mostrar os dentes. Risos. O diafragma devia doer. Risos. Os músculos faciais deviam doer. Risos. O cérebro em desespero clamando por oxigênio. Risos. Uma noite aleatória sonho com esta frase. Não tem nenhum sentido para mim. Saio para o trabalho e vou almoçar com essa porcaria martelando em minha cabeça. Um cara, que trabalha na mesma sessão em que eu, está dividindo a mesa comigo. O jeito como ele mastiga, de alguma forma, reduz meu apetite. Ofegante, tritura e engole. Não sabe apreciar a droga da comida; se pudesse, aposto que engoliria o alimento inteiro. Quase nunca puxo conversa. Há exceções. Pergunto se já sonhou com uma frase. Ele diz que não. Lembro de um navio. Havia uma porcaria de um navio no sonho. O céu estava escuro. Tempestade. Um velho marinheiro. Dentes de ouro. Será que vou receber a droga do aumento? Queria alugar um apartamento mais alto, a merda dos carros não param de passar a noite toda. Um velho marinheiro. Dentes de ouro. Um papagaio ao ombro. O papagaio diz a tal frase. Meu colega não está ouvindo porra nenhuma do que estou falando. Tritura e engole. Conto a frase. Ele arregala os olhos por um momento, então a catarse. O clímax. O êxtase. O orgasmo. As primeiras gargalhadas saem altas. Agora está caído ao chão. Se contorce. Parece um ataque epilético. Ouço o riso ficando mais baixo. Não posso vê-lo de onde estou sentado, a mesa encobre a visão. Alguém está o socorrendo. Há pavor nos rostos. Estou comendo meu bife a parmegiana com purê de batatas. A carne é mais macia enquanto quente. Não ouço mais risos e todos me olham e me questionam. Olhares acusadores. Não direi nada até acabar minha refeição. Não vou apressar meu ritmo. Pronto. Posso responder. Não sei o que houve. Arroto. Ele não sabia nem comer. Contei um sonho estúpido. Por que vocês têm que ser tão chatos? Falo do marujo. Da tempestade. Do papagaio idiota. Digo a frase. Sou o anjo do apocalipse. Todos tombam ao chão se contorcendo em risos. Que cena bizarra. Minha trombeta anunciando o fim dos tempos é uma frase estúpida dita por um papagaio num sonho. Uma vez, morei perto da casa de uma velha que ensinava palavrões para o seu papagaio. Nunca tive animais de estimação. Talvez seja por isso que não sou casado, se é que você me entende. O episódio mexe comigo. Se eu fosse visitar minha família, talvez ainda pegasse todos reunidos à mesa. Frango. Salada. Macarrão. Irmãos. Pai. Mãe. Tia. Falar ou não falar? Alguém pergunta se ainda estou solteiro. Alguém pergunta se ainda estou no mesmo cargo. Alguém pergunta se não quero salada. Eu já tenho salada no meu prato. Não me contenho. Não que tenham realmente me deixado irritado. De qualquer forma, sei que, se eu pudesse me irritar, aquilo me irritaria. Conto que tive um sonho estranho. Talvez essa seja pelo Complexo de Édipo. Falo de um velho marinheiro com dentes de ouro. Talvez seja por ter que comer verduras antes da sobremesa. Falo de um papagaio idiota que ele trazia ao ombro. Talvez seja por ter que estar sempre arrumadinho, como a droga do coroinha do ano. Falo sobre o céu escuro... tempestade. Talvez por sempre ter que esperar que alguém use o banheiro... e cague fedido. Conto a frase estúpida dita pelo papagaio. Talvez por nunca ter sentido raiva disso tudo. Risos. Um quadro estranho. Soa como se eu estivesse integrado. Como se tivesse contado uma piada. Uma anedota engraçada como todos fazem. Algo divertido como nunca fiz. Mas ninguém vai me dar um tapinha nas costas. Ninguém vai me dar parabéns pela piada. Ninguém vai passar aquela frase idiota adiante numa reunião de amigos. Ninguém vai sair vivo da cozinha. Barulhos contínuos atrapalham meu apetite e minha digestão. Espero os risos cessarem e pego um frango empanado. Uma última oportunidade. Minha mãe fazia frango empanado como ninguém. Poder. Sinto-me entorpecido de alguma forma. Todos parecem tão frágeis agora. Como se tivesse que cuidar para não pisar neles. Para não esmagá-los sem querer. Uma distração e poderia deixar a frase escapar na fila do supermercado. A polícia vem a minha casa pedindo um depoimento a respeito das mortes. Eles não vão querer saber. Digo a frase. Semeio a morte. A TV local me procura. Digo que só dou declaração se for ao vivo. Terrorismo. Assassinato em massa sem alvo definido. A repórter era bonita. Alguma parte de mim considera aquilo um desperdício. O que houve afinal, ela pergunta. Imagino os telespectadores em casa. Jantando com a família. Tomando uma cerveja após um dia duro de trabalho. TV ligada enquanto acaba a lição de casa ou um relatório. Ouvindo o telejornal enquanto estão cagando. Ouvindo a droga do noticiário enquanto estão fazendo sexo. Enquanto cortam cenouras em rodelas para preparar uma sopa que jamais será acabada. Essa era uma vantagem de se morar numa metrópole. As possibilidades eram diversas e eu jamais iria conseguir supor todas elas. Imaginei-me visitando as casas no dia seguinte, tentando descobrir o que faziam quando ouviram a frase. Soava como um bom passatempo. Senhor... o que houve afinal, insiste a repórter. Adeus, jovem repórter. Adeus, caros telespectadores. Pulo a parte do velho marujo. Do papagaio idiota. Digo direto a frase. Deixo para trás a repórter e o câmera se debatendo no chão. Vou para casa. Estou cansado. Você deve estar curioso para saber que frase é essa. Você quer saber? Aposto que você morreria de rir. Será que acabei de fazer uma piada? Será que foi engraçado? Será que foi engraçado? Bem, que diferença faz.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Horário de Almoço

Ele sai do trabalho meio-dia em ponto. Não está faminto, mas o almoço cairia bem. Os carros passam continuamente. Ele espera o semáforo fechar e atravessa a rua. Segue seu caminho até chegar à próxima esquina. Há uma faixa de pedestre; supostamente, ele teria a preferência. Mas há uma linha imensa de carros que não param de passar numa velocidade relativamente alta, ignorando-lhe a presença. Ele espera por alguns minutos. Se houvesse algum carro indo na mesma direção que ele; se algum carro viesse para atravessar aquela rua, então, os outros teriam que dar a preferência. Então, aquela linha metálica contínua seria interrompida. Mas, não, um mero pedestre não poderia interrompê-la. Mas, não. Não veio nenhum carro ao seu socorro. Diante de sua impotência, resolveu voltar ao trabalho e esperar que o horário de almoço chegasse ao fim para recomeçar suas tarefas. No entanto, não se sentia revoltado. Afinal, talvez não tivesse mesmo o direito de comer.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Inominável

Havia um homem que jurava ter visitado um outro planeta. Como tinha sido a viagem até lá, aqui se faz irrelevante. O que realmente intriga e, na opinião deste narrador, angustia, é uma outra questão. O homem não relatava ter visto os clássicos homenzinhos verdes de olhos esbugalhados, nem paisagens futurísticas de cores púrpuras. O que ele dizia era algo muito mais impressionante. Ele dizia que simplesmente não podia relatar. Que as cores que vira nunca antes tinha visto em nosso mundo; que os seres que tinha visto lá, eram completamente diferentes dos de nosso planeta, sendo impossível fazer qualquer analogia. Peço ao leitor que se coloque nesta situação. Imagine que a cor roxa não existe em nosso planeta e que, de alguma forma, somente você teve acesso a ela. Como descrevê-la aos outros?

Havia um pianista tido como genial por seus contemporâneos. Suas apresentações lotavam teatros e tocava apenas músicas que ele mesmo compunha. De repente, de um dia para o outro, passou a compor melodias que aparentemente não tinham harmonia alguma. Era como se um leigo houvesse se sentado ao piano e tivesse começado a bater os dedos aleatoriamente nas teclas. No entanto, o ar de satisfação que havia no semblante deste compositor e o ânimo com que falava de suas novas canções deixavam seu público completamente confuso. Seria uma brincadeira? Não, ele não era do tipo que se prestava a este tipo de humor. Teria ficado louco? Não apresentava nenhuma alteração em suas faculdades cognitivas. Teria então, de alguma forma, aquele homem percebido algum sentido naquela seqüência aparentemente aleatória de notas; teria ele, de alguma forma, tido acesso a um tipo especial de harmonia que todos os outros não podiam compreender e que ele jamais poderia explicar ou descrever. Pergunto-me o que seria mais angustiante, supor que existe algum tipo de harmonia que não está ao meu alcance, ou, alcançá-la e não poder compartilhá-la?

Havia um homem, entre 30 e 35 anos de idade, emprego estável e casado há quase 10 anos. Seu relacionamento com a esposa já não tinha nada de especial; não raro, pensava em outras mulheres durante o ato sexual. Nunca a traíra efetivamente, levando em conta o que socialmente se considera adultério; mas inúmeras vezes tivera vontade. A vida resumia-se a uma rotina que não era ruim e nem satisfatória. Fazia planos de como aumentar sua renda, não exatamente por ambição, apenas porque não havia mais nada para planejar ou almejar. Sua esposa ficou grávida, achou legal; jamais confessaria, mas também não ficou assim tão empolgado como achava que deveria. Sentia uma certa culpa por isso. Alguns meses depois pegou seu filho pela primeira vez nos braços. Aquilo que sentia naquele momento era algo que dava sentido a todos os anos que até então vivera, e a todas as coisas que o cercavam. Era como se um filtro que não o deixava ver um tipo especial de beleza houvesse se rompido naquele momento. Quando voltou do hospital para sua casa naquele dia, ele escreveu estas linhas: “Era como se houvesse algo entre o coração dele e o meu, não sei dizer o quê. Parecia que eu desejava que nossos corpos se fundissem, que o corpo dele entrasse em meu peito para que pudesse protegê-lo de tudo. Inúteis palavras, que não sentem”.

Pelas ruas perambulava um homem. Dizia palavras ininteligíveis, sílabas que juntas não faziam nenhum sentido para quem as ouvia. Mas ele as proferia com uma energia que quase chegava a ser comovente. Trajes sujos, cabelos desgrenhados, completamente ignorado por todos que passavam. O diagnóstico: esquizofrenia. Mas este narrador, lá no íntimo, com medo de ser tachado de louco por si próprio, chegou a se perguntar: “E se aquelas palavras, unidas numa sentença, realmente possuem alguma lógica? E se realmente compõem alguma mensagem?”.

Às vezes penso nos lugares bonitos do mundo que nunca vou conhecer, mas isso não me deixa assim tão triste. O que realmente me causa angústia é pensar que pode haver um livro que eu iria achar fantástico, uma música que seria minha preferida, mas que nunca vou ter a oportunidade de conhecer, por uma série de fatores, obviamente, inclusive geográficos e comerciais. Imaginar isso é terrível, mas pior do que não conhecer as produções das pessoas é não conhecer as próprias pessoas. Isso me atormenta ainda mais. Pensar que alguém que passa ao meu lado na rua pode ter idéias que nunca me ocorreram; pode ter hábitos que eu acharia curiosos e divertidos; pode conhecer uma poesia que eu acharia fantástica, mas que nunca li; pode conhecer uma piada que eu acharia a mais engraçada de todas, mas que nunca ouvi. Pensar que seria bom conversar com essa pessoa estranha, e que ela também acharia bom conversar comigo. Pensar que essa conversa mudaria um pouco de nós dois, mas que isso nunca vai acontecer, por um motivo que eu não sei dizer direito qual é... Porque as pessoas não conversam com estranhos a não ser que haja um motivo, e as palavras não conseguem explicar direito por que isso é assim.

A comunicação é o que faz nossas vidas. É a relação o que me define e me liberta, é a ponte que liga minha ilha a todas aquelas que me cercam. Mas a ponte é estreita e minha ilha não pode vazar por ela. Há tantas coisas que me intrigam e há tanto indizível que precisa ser dito. Por exemplo, há algo que eu precisava dizer quando comecei este texto. E pior do que não saber o que é isso que precisava ser dito, é saber que não caberia nas linhas acima, nem em tantas quantas eu ousasse me estender. Mas o que realmente me intriga é pensar que pode haver uma única palavra em algum outro planeta, ou criada por algum louco que perambula pelas praças, uma única palavra que diz tudo aquilo que eu tanto precisava dizer. Mas, como não encontro, ou, quem sabe até encontrá-la, fico com a citação de uma vida, surpresa, diante da força de outra: “Inúteis palavras, que não sentem”.


terça-feira, 7 de outubro de 2008

Sentimento da Vida

Ângela desce exausta do metrô. A faculdade a desgasta e nem desperta muito seu interesse. Nunca em toda sua vida encontrou uma única pessoa com quem realmente se identificasse. O estágio é terrível, mas precisa do dinheiro. Gosta de pintar paisagens bonitas usando tinta guache e os próprios dedos em vez de pincel, isso a deixa um pouco mais alegre, mas não dá dinheiro. Catalogar pedidos, controlar estoque, pregar etiquetas dá dinheiro. Pouco, mas dá. Só que também parece roubar aos poucos toda a beleza que ela consegue ver na vida. Mas ela precisa comer, pagar aluguel, comprar sapato e escova de dentes. E ninguém compra um quadro feito com tinta guache, retratando um sol sorridente e um coelho pulando corda.

A vida é estranha, Ângela não pensa isso claramente enquanto está saindo do metrô; mas alguma parte dela sente essa estranheza. A vida parece ser um eterno suprir de necessidades na esperança de dias em que haja algo mais. Tais dias virão? Se não for essa esperança, o que a levará a comprar a próxima escova de dentes? Ângela só quer chegar o mais rápido o possível em sua casa (uma kitchenette alugada, de 3 cômodos) e pintar um arco-íris com tinta guache na parede de seu quarto. Se não fizer isso, sabe que não agüentará ir ao seu estágio no dia seguinte, nem à faculdade ou ao supermercado...

Ângela sai da estação de metrô. Quase é atropelada por uma senhora bastante idosa empurrando um carrinho de madeira improvisado, cheio de latas e papéis velhos. Dentro dele, também há uma garotinha, carregando no colo, com bastante cuidado, um bebê um pouco menor do que ela. Ângela sente uma dor estranha ao ver aquilo, tenta segurar o choro, mas uma lágrima teimosa desliza por seu rosto. Não era apenas compaixão que havia naquela dor. Também havia perdão. Naquele momento, em que seu coração parecia querer gritar algo, Ângela perdoava a tudo e a todos, inclusive a ela própria.

domingo, 5 de outubro de 2008

Sobre Perdão e Liberdade

Hoje você precisa me ouvir, é tudo que te peço

Sei que isso tudo cansa e você nem sabe mais de onde vem o cansaço

E você olha pro espelho e pergunta: “eu mereço?”

Você se perdeu no meio da bagunça, sorriu... e te arrastaram pelo braço


E todos te pedem, te perguntam, te confundem e te prometem

A mesma velha história de que podem te dar tudo, mas nunca agora

E você tem raiva, desiste, chora, mas não odeia... não merecem

A própria vida é medida provisória, se aqui dentro cansa, tenta lá fora


Não vou te prometer que tudo vai dar certo no fim

Espero que sim, mas não vou mentir, nem te dar falsas certezas... perdoe

Sei que cobram muito de você, e também cobram de mim

Mas não vamos pagar a estupidez deles com nossa tristeza... não hoje


Eu prometo esquecer o guarda-chuva, se você prometer rir de “cara feia”

Eu levo cola, tesoura e giz de cera; você desenha céu sem nuvem, mar e baleia

Prometo abraçar uma pessoa estranha, se você prometer acordar depois do meio-dia

Às vezes, quando se perde é que se ganha, se perde sanidade e se ganha poesia


Eu queria consertar todas as coisas, tanto quanto você

Mas se não dá pra mudar tudo, é melhor fazer pouco do que nada

Se tudo parece não ter sentido, não sofra tentando entender

E saiba que nunca terá sido em vão, aonde quer que leve a estrada

domingo, 28 de setembro de 2008

BOBAGEM

Há aquela voz que sussurra de algum lugar: “É isso?”

E você tenta fugir dela, mas não adianta correr

Você olha pra aqueles que te cercam e pergunta: “É realmente preciso?”

Esqueça, eles nunca vão te compreender.


Você tenta usar rimas simples pra falar de coisas complicadas

E aquela voz sussurra: “Adianta?”

As piores respostas nunca precisam ser pronunciadas

E você encerra sua poesia chata pela metade, sem graça e sem rima.

domingo, 21 de setembro de 2008

Poema nos meus 43 anos

Não gosto muito de postar textos que não são meus, mas achei que o Charles Bukowski mandou tão bem nesse poema que acabei não resistindo. Segue a versão em português e a original em inglês:

Terminar sozinho
no túmulo de um quarto
sem cigarros
nem bebida —
careca como uma lâmpada,
barrigudo,
grisalho,
e feliz por ter
um quarto.

... de manhã
eles estão lá fora
ganhando dinheiro:
juízes, carpinteiros,
encanadores, médicos,
jornaleiros, guardas,
barbeiros, lavadores de carro,
dentistas, floristas,
garçonetes, cozinheiros,
motoristas de táxi...

e você se vira
para o lado esquerdo
pra pegar o sol
nas costas
e não
direto nos olhos.



Poem for my 43rd birthday

To end up alone
in a tomb of a room
without cigarettes
or wine —
just a lightbulb
and a potbelly,
gray-haired,
and glad to have
the room.

... in the morning
they’re out there
making money:
judges, carpenters,
plumbers, doctors,
newsboys, policemen,
barbers, carwashers,
dentists, florists,
waitresses, cooks,
cabdrivers...

and you turn over
to your left side
to get the sun
on your back
and out
of your eyes.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

MIRAGEM

Sou metade eu, metade falta

Metade busca do que não está, metade busca do que não é

Mas quando a falta é mais do que sou, aí já não queria ser

Quando a falta me preenche com sua ausência,

Me sinto cheio de um vazio que faz doer


Sou metade vida, metade morte

Metade vida que pulsa, metade pulsão de morte

Mas quando a morte é mais que vida, aí já não queria pulsar

Quando a morte me rouba o calor que tanto busco

Sinto a calma brisa que sopra do mar


Sou sombra de desejo e desejo de sombra

Sozinho no deserto, me queima o sol da repressão

Pai, me compra o mundo; mãe, fica junto

Não quero mais ter que desejar

Não quero mais ter que ter, não quero mais que me tenha,

Não quero...


Sou metade alegria e metade tristeza

Metade riso que sopra, metade angústia que sufoca

Mas quando a tristeza é mais do que pode ser

Quando o sentido se perde ou parece banal

Aí as palavras são inúteis...

E o ponto é final.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

O Misterioso Peixinho Dourado

Essa você não vai acreditar! Pode parecer a maior palhaçada do mundo, mas um dia eu pensei em ser escritor. Eu sei, pode rir. Todo aquele monte de merda, tipo, os caras julgando o que você fez, dando palpite: “Acho que essa parte aqui poderia ser diferente, não ficou tão realista assim...”. Então vai escrever tua merda de história realista. Se você quer realismo, contente-se com a tua vida, chata pra cacete, e bem realista.

Isso sem falar na porcaria das editoras, com um editor safado que, se te aceitar, vai ser só pensando em encher o rabo de dinheiro. Na estante dele você vê: “O monge e o executivo, uma história sobre a essência da liderança”. Não consigo ler um título desses e achar que o cara que escreveu não estava de sacanagem. Você pode achar que eu estou com dor de cotovelo ou sei lá o quê, porque o cara deve vender muito. Mas a verdade é que não, nunca escrevi pensando em vender nem nada. Literatura é como montar quebra-cabeça, ou tocar violão sozinho, ou sentar no meio de uma praça no final da tarde. Qualquer coisa com mais pretensão que isso vira um monte de cocô gigante. E ninguém mais tem vontade de ler; e todo o escritor vira um babaca metido à besta; e todo mundo quer que o figurão assine seu livro e faça uma dedicatória, e ele manda uma mensagem piegas e clichê pra caramba. E, depois disso tudo, você nunca mais tem vontade de escrever outra vez.

Mas tem uma coisa ou outra que ainda é divertida, tem uns caras aí que ainda merecem ser lidos, porque eles escrevem por escrever mesmo, e não porque querem te vender um monte de porcaria ou se achar os senhores intelectuais. Tem esse cara, irmão de um amigo meu, ele escreveu uma história chamada: “O misterioso peixinho dourado”. A história é divertida pra caramba, sei que vou estragar ela, porque não vou lembrar na íntegra e ele escreve muito melhor do eu, mas é mais ou menos assim.

“O garotinho tinha enchido o saco da mãe dele a semana inteira pra ir ao parque de diversões, até que, finalmente, o dia havia chegado. Era um sábado. Puxa, como ele gostava de parques de diversões! Não era nem pelos brinquedos nem nada. Não que ele não gostasse dos brinquedos, mas tinha coisas que ele achava muito mais legais. Por exemplo, o cheiro de todas aquelas comidas diferentes e os cachorros sem dono que ficavam passeando por lá. Ele gostava de imaginar que esses cachorros eram inteligentes e conseguiam se comunicar uns com os outros e com outros animais também, e que sempre estavam bolando alguma aventura. Nossa, ele podia imaginar a história toda. Quando deitava na sua cama, ele ficava pensando na tal história. O líder do grupo dos animais era sempre algum cachorro mesmo, e eles estavam sempre querendo desmascarar algum safado, que sempre era um ser humano. Podiam estar querendo meter em cana o dono do parque, por exemplo, que, na história que ele imaginava, maltratava um macaquinho que havia sido comprado na Turquia. Na verdade, o dono do parque tentava adestrar o tal macaco, pra, se caso fosse possível, treinar um monte deles pra ficarem trabalhando nas bilheterias de graça”.

“Puxa, esse garoto era divertido mesmo! Ele também gostava de comprar maçãs do amor, não gostava muito de comer elas, porque eram meio duras e ficavam grudando nos dentes. Mas ele adorava a cor delas, e o jeito como eram brilhantes. Sua mãe sempre dizia que não adiantava comprar porque ele ia acabar não comendo mesmo. Mas ele sempre conseguia convencer ela, depois dizia que estava com dor de barriga ou algo assim e pedia pra ela guardar pra ele comer depois. Quando chegava em casa, ele dava a maçã pro gato, que até tentava comer ela no começo; só que aí ela saía rolando e ele esquecia que estava tentando comer e começava a bater ela de um lado pro outro por toda a casa”.

“A brincadeira que ela mais gostava em todo o parque era derrubar latas. Já tinha conseguido alguns prêmios relativamente bons. “Relativamente” porque esses caras dos parques são uns safados que sempre tem medo de sair perdendo alguma grana e, geralmente, só colocam alguns prêmios baratos. Mas, uma vez, ele conseguiu um urso de pelúcia que batia quase na sua cintura, só que o urso era rosa, aí ele deu pra sua mãe. De qualquer forma, ele não ficou triste, porque o urso era até que bem bonito e a sua mãe sempre lhe dava um monte de coisas legais e ele nunca dava nada a ela, tirando os presentes da escola quando tinha dia das mães e essas coisas. Mas ele achava que isso não contava, porque era ela mesma que dava o dinheiro pra ele comprar o presente. Puxa, ele tinha uma raiva disso! E os idiotas da escola sempre pediam a droga do dinheiro na semana do dia das mães, como se as mães fossem tapadas e não fossem desconfiar de nada. Claro que tinha aqueles que podiam pedir a grana aos pais em vez das mães, mas não era o caso dele... De um jeito ou de outro, o mais sensato seria pedir o tal dinheiro logo no começo do ano, que aí quando chegasse o dia das mães, elas nem lembrariam de nada e o presente realmente seria uma surpresa. Puxa! Ele tinha pensado nisso como se fosse a coisa mais óbvia do mundo e só tinha 10 anos. Realmente, ele não sabia o que se passava com aquelas professoras!”

“Mas o fato é que ele pediu pra sua mãe comprar um bilhete pra ele tentar derrubar algumas latas. Ele tinha direito a 5 bolas. Puxa, esses caras do parque eram mesmo uns pilantras! Pelo que ele lembrava, no ano anterior eram 8 bolas. Mas tudo bem, ele não podia deixar que esse tipo de golpe baixo o desconcentrasse. Errou as duas primeiras bolas, acertou a terceira e a quarta, e errou a última. Ou seja, ganhou dois prêmios. Um deles era um pequeno revólver que atirava água, ele até teria se empolgado com o prêmio se o outro não fosse muito mais legal. Um peixinho dourado! Puxa, isso sim que era prêmio! Ele veio dentro de um saco plástico. E o menino ficou doido de vontade de voltar correndo pra casa e colocar ele dentro de um aquário ou pelo menos numa jarra de vidro. Ele não sabia explicar por que, mas achava que, se ele fosse um peixe, odiaria ser colocado numa droga de saco plástico”.

“A mãe dele não teve escolha, teve que voltar correndo pra casa mesmo. Ele se sentiu meio culpado, porque ela nem pode ver os avestruzes. Ela adorava os avestruzes, por esse tipo de coisa que ele achava ela a mãe mais legal do mundo. Ela sempre dizia pra todo mundo que era ele quem era maluco pelos avestruzes e, quando eles estavam no parque, ela dizia: “Depois a gente pode dar uma passadinha pra ver os avestruzes; quando eu tinha a sua idade eu era maluca por avestruzes”.

“Ele se sentiu meio culpado por apressar ela e tudo, mas ele tinha a impressão de que o peixe iria morrer a qualquer momento se continuasse na droga de saco plástico. Ele acabou encontrando um aquário antigo, de um outro peixe que havia tido uma vez, mas que só sobreviveu umas duas semanas. Ele gostava dos peixes porque eles só querem levar a vida deles, sabe. Tipo, eles passam a vida inteira trancafiados e nunca reclamam de nada. Tá, tudo bem que nem podem reclamar mesmo, mas o fato de não poderem reclamar já os torna mais legais que os outros bichos. Se você tem um gato, por exemplo, ele começa a se esfregar na tua perna e a bancar o teu amigo, depois começa a miar feito um doido pra você colocar ração na droga da tigela dele. Não agüento um troço desses. Não sei porque ele não pede só a comida e pronto, seria mais honesto da parte dele”.

“Tudo bem, ele colocou o peixe no aquário e lembrou que ele precisava de ração. Puxa, como ele esqueceu disso! Eles deviam ter ração pra vender no parque, se é algo que eles podem vender, eles sempre têm. O troço deixou ele meio desesperado, porque ele não queria que o peixe morresse por falta de comida. Mas aí a mãe dele o tranqüilizou e disse que podiam comprar comida no dia seguinte, que os peixes podiam passar semanas sem comer e tudo. Ele duvidou um pouco dessa parte, mas ele também achava que o peixe não morreria por não comer naquela noite. Ele foi deitar e só então percebeu o quanto estava cansado. Caiu na cama e apagou. Acordou no meio da madrugada e resolveu dar uma conferida no peixe, só pra ter certeza de que ele ainda estava vivo. Chegou bem perto do aquário, encostou o dedo na superfície da água e o peixe subiu, bem devagar. A mãe dele tinha razão, os peixes deviam ser resistentes mesmo, porque, afinal de contas, num rio ninguém vai lá atirar alimentos nem nada. Eles tem que se virar com os insetos e com os troços que caem das árvores. Ele ficou mais um tempo olhando o peixe, pensando o quanto deveria ser chato viver trancado num aquário. Ele se virou, deu três passos em direção ao seu quarto e, então, o mundo explodiu”.

Isso mesmo, o conto acabava assim, o mundo explodiu. Eu vibro com um troço desses. Não sei por que o irmão do meu amigo resolveu escrever esse final. Não sei se estava com preguiça de continuar escrevendo ou se tinha pensado nisso desde o começo, talvez ele tenha tentado fazer um final engraçado ou estava sem idéia. Sei lá, só sei que até hoje eu não consegui pensar num final melhor. Sei que a maioria das pessoas pra quem eu contei essa história até hoje, achou ela estúpida e sem sentido. Porque a maioria das pessoas sempre tenta encontrar sentido pra tudo, como se a vida delas fosse legal pra caramba e cheia de sentido. Aí elas começam a comprar esses livros intitulados “o monge e sei lá o quê”, que deve ser cheio de propósitos e esses montes de encheção de saco. Aí, lá no fundo, você se sente deprimido pra caramba, por as pessoas gostarem desse tipo de porcaria e detestarem o conto do peixinho dourado, do irmão do meu amigo. Um amigo meu me disse uma vez que você sabe se a história é boa se, quando você acaba de ler ela, você tem vontade de telefonar pro cara que escreveu, só pra bater um papo sobre qualquer coisa besta. Eu fiquei com uma vontade danada de ligar pro autor do “misterioso peixinho dourado”. Não sei se alguém tem vontade de ligar pros caras que escrevem “o monge e não sei quem”, talvez tenha.

O que eu acho engraçado é que esse irmão do meu amigo até que é um escritor relativamente conhecido e, sei lá como, ele conseguiu publicar esse conto numa revista. Eu fico imaginando a cara daqueles charlatões, metidos a crítico e tudo, daquele tipo que nunca riu de uma piada durante toda a vida e sempre tirou dez em tudo na escola, eu fico imaginando a cara desses sujeitos quando leram o conto do misterioso peixinho dourado. Puxa, eu fico doido com um troço desses!

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Ágata e o Crepúsculo

Ágata ainda é jovem, o mundo ainda parece fresco para ela. Gosta de passear pelo jardim botânico nos fins de tarde, ou de sentar-se em algum banco da praça que fica próxima a sua casa, esperando que o sol comece a se pôr. Mas não hoje.

Ágata gosta de poesia. Sabe recitar mais de uma dezena delas de cor, e também escreve suas próprias. Sabe tocar flauta, e até compôs uma ou outra melodia que nunca mostrou para ninguém. Mas não hoje.

Ágata gosta de cinema. Várias vezes, abandonou uma aula tediosa para assistir a algum filme que estivesse em cartaz. Gosta de sentir o cheiro de pipoca ou de deixar-se cair no sono, recostada confortavelmente na poltrona; sente-se mais segura para dormir, sabendo que há outros por perto. Mas não hoje.

Ágata gosta de sentar-se diante de algum lago de água parada, ou de um riacho de água corrente. Gosta de ver os insetos andando pela superfície límpida, sem afundar; ou de atirar ramos na corredeira e vê-los se afastando até sumir das vistas. Mas não hoje.

Hoje, a barriga de Ágata ronca, e seu armário está vazio.

domingo, 3 de agosto de 2008

BANAL

J. S. é um rapaz de 18 anos. Possui 3 irmãos mais novos, duas meninas e um menino. Pais divorciados, família de classe média baixa. Trabalha meio período como caixa numa loja de conveniências de um posto de combustível. Estuda para ter um futuro melhor. “Persiga o futuro para não ser esmagado pelo presente”.

J. S. não possui amigos, nem namorada. Até tentou, mas concluiu que não valia o custo-benefício. Nos finais de semana, bebe em um terreno baldio próximo a sua casa. As costas encostadas contra o muro frio, as roupas molhadas pelo sereno. Serenidade... O barulho dos grilos é sobrepujado pelo som de seu MP3.

No dia seguinte, ele acorda cedo. Repete sua rotina. Anda até o ponto de ônibus. Repara num outdoor novo. Na imagem, uma moça anda de bicicleta, com os braços abertos e o tronco inclinado para trás. Parece se sentir tão livre. Parece haver tanta poesia naquela cena. Não lê o slogan... Por que será que ela se sentia tão livre? Se tivesse que arriscar, diria que era uma manhã de outono.

J. S. ouve uma freada brusca. Sente um primeiro impacto na altura de seus joelhos, o tronco bate contra o capô e a cabeça contra o pára-brisa. Seguem-se alguns segundos de silêncio e, deitado no asfalto, ele não tem dúvidas: aquele é o dia mais bonito de sua vida.

TELL ME... WHERE´S GANDALF?

domingo, 27 de julho de 2008

Hikikomori

Eu fico me perguntando quando realmente isso começou... Difícil precisar. Às vezes, chego a pensar que nasceu comigo. Algumas pessoas nascem com certas habilidades, outras com algumas dificuldades. Eu nasci cercado por um muro, invisível para os outros, mas não para mim. Mas será mesmo?...

Imagine-se cercado por um muro, com uma área de um 1 m2, muito mais alto que o maior arranha-céu já construído e que não pára de crescer. Sei que num primeiro momento deve parecer desesperadora a sensação de estar cercado; mas, hoje, me apavora a idéia de um dia o muro se acabar. Hoje, dependo dele.

Há 17 anos, 7 meses e 23 dias estou isolado em minha casa. Algumas raras saídas de meu quarto. Algumas raríssimas caminhadas pela madrugada, por lugares que sei que não encontrarei ninguém. Hoje me peguei perguntando algo que, curiosamente, nunca havia me ocorrido: Como tudo começou? Quando eu coloquei, ou, quando colocaram os primeiros tijolos do meu precioso muro?

Poderia ter sido o bullying. Um termo norte-americano para designar as agressões físicas e psicológicas (no meu caso, psicológicas) entre colegas de escola. Geralmente, as vítimas mais freqüentes são alunos gordos, ou muito magros, ou muito altos... No meu caso, nenhuma das características anteriores. Não sei ao certo por que meus colegas me escolheram. Talvez um garoto qualquer tentando se mostrar engraçado para as meninas... chamar a atenção da classe, escolha você ao acaso. Talvez o ridicularize em público de alguma forma. Você ainda está seguro de si, ainda possui uma auto-estima bem estabelecida e considera o episódio uma bobagem. Recorda-se do ocorrido algumas vezes antes de dormir e pensa que deveria ter revidado. As palavras que faltaram na hora agora sobram. As melhores respostas sempre chegam atrasadas. Passam-se alguns dias e você é ridicularizado de volta. Agora, por outra pessoa. Talvez o fato de já haverem te escolhido uma vez, te torne bem cotado para uma próxima escolha. Você procura alguma lógica, mas não encontra. E você perdoa a todos, por que, afinal, você é tão bom, tão superior a todos para guardar rancor ou para se vingar. Você acaba de unir um componente muito perigoso nessa mistura, sua arrogância.

“Puna no momento certo para não ser punido para sempre”. Isso é algo que se aprende; infelizmente, as melhores respostas sempre chegam tarde. Você é o alvo outra vez, e outra... e outra... e outra... Quando você se dá conta, até os professores já estão o ridicularizando. Você não se sente mais seguro; já não há mais sombra de autoconfiança ou auto-estima. Aonde quer que você vá, você se sente um soldado nu cercado por um pelotão inimigo. Você não considera mais o acaso como o fator determinante. Passa a achar que há realmente algo de errado com você. Paranóia. Para onde quer que você vá, qualquer risinho discreto, qualquer olhar passageiro, tudo está contra você. Você é o alvo. Você é a piada. Você é o intruso. E você percebe que não é imune a aplicabilidade dos chavões: “Uma mentira repetida muitas vezes se torna uma verdade”.

Você muda de colégio, mas depois de tanto tempo de tortura, será que você ainda é o mesmo? Você toma sua inferioridade como certa. Tenta, em vão, encontrar uma lógica. Torna-se vítima outra vez, não importa para quantos colégios se mude, esse é seu estigma. Não precisa muito tempo para que o menino sorridente no porta-retratos só deseje explodir, varrendo da Terra todas as pessoas más. No íntimo, a pergunta: sobraria alguém?

Filho único, passa a descontar seu ódio represado na única pessoa que julga ser inocente, sua mãe. Uma viúva que não possui muitas alegrias em sua vida, que julga seu filho aquilo que possui de mais precioso. E ele compreende e perdoa todos os seus algozes, cria álibis para eles; no entanto, pune a ela, com frases afiadas, perguntas capciosas. Que ironia, será que há algum prazer especial em punir inocentes? Seria um efeito em cadeia? Mas esse filho sente-se extremamente culpado por essa postura que adotou, e da qual não consegue se desvencilhar. Mais um conflito para seu vasto repertório.

Um amor materno que não consegue corresponder da maneira adequada. Uma vítima que não consegue encontrar razões para as torturas que sofre. Encontra álibis para seus torturadores. Pune a única pessoa que não o maltrata (talvez a puna justamente por isso, por mais esta contradição: “por que não são todos que o odeiam?”; talvez fosse mais fácil...). Culpa. Necessidade de corresponder às expectativas. Inferioridade ou superioridade?

No Japão, em vez de bullying, utiliza-se o termo ijime para denominar este fenômeno. O ijime é um dos principais causadores do suicídio infantil e do abandono escolar. É estranho pensar como crianças podem ser tão cruéis umas com as outras. A competição e o convívio em grupo podem despertar em nós todo o tipo de comportamento. Destrua para não ser destruído, ou, isole-se.

Você passa a agir de maneira estranha. Seus contatos com os outros vão ficando cada vez mais raros. Você teme a todos e a tudo. Não quer mais se aproximar de ninguém. Não quer mais conversar com ninguém. Qualquer voz o irrita. Sua própria o irrita mais que todas as outras. Inicia-se uma contagem regressiva das palavras que você passa a proferir durante o dia até, finalmente, chegar ao zero. O confortável zero. O confortável muro. A confortável tristeza. Você passa a desejar estar sedado por todos os dias restantes de sua vida. Um tipo de morfina permanente. Os melhores momentos de sua vida passam a ser aqueles em que está dormindo.

Mas você está seguro atrás dos limites de seu muro. Você mora em seu quarto. Há uma abertura na porta, que você criou para sua mãe passar o prato com comida e, vez ou outra, trocar algum bilhete com você. Ela nunca desiste. Você raramente responde os bilhetes dela, mas ela continua escrevendo, todos os dias, durante estes 17 anos, 7 meses e 23 dias ela não falha uma única vez sequer. Ela tem esperança que você saia e que tudo seja da maneira que ela sempre fantasiou. Ahh... e você se sente culpado de uma forma que jamais caberia em palavras! E você chora como um tolo enquanto escreve isso. E você, que já não crê em nada, reza para qualquer coisa que possa existir para nunca haver nascido, para ser apagado da memória dela. Seria mais fácil se todos o odiassem.

Hikikomori. A nomenclatura sempre o define de uma forma para o classificar, mas nunca de uma forma para realmente o conhecer. É assim que denominam isso que me tornei. Já não me lembro há quantos anos não pronuncio uma única palavra. Você não precisa mais se preocupar com muitas coisas. Não há mais vida social, não precisa mais se preocupar em agradar ninguém. Sem mais falsos sorrisos, conversas forçadas e coisas do gênero. Você não precisa mais viver para os outros, mas, se você não viver para os outros, viverá para quê?

Poucos banhos mensais, sem mais vaidade. Um novo tipo de monge. Um novo tipo de ermitão. Você divide a maior parte de seu tempo entre a TV e o computador; uma fatia menor entre livros e quebra-cabeças. Você conhece um sem número de animes, e o motivo de você continuar vivendo passa a ser conhecer o final daqueles que está assistindo no momento (uma dica, sempre esteja assistindo algum), ou o final do romance que está lendo (histórias diferentes de sua vida maçante), ou então, a grande razão de sua existência passa a ser colocar a peça final do quebra-cabeças que está montando no momento. Nada muito nobre, nenhuma epopéia.

Você só escreve bilhetes para sua mãe para lhe pedir bebidas alcoólicas ou mesmo morfina. Então, você descreve seu sofrimento para persuadi-la (egoísta, imundo). E você chora por horas quando recebe aquilo que pediu através daquela pequena abertura da porta de seu quarto. E você ouve um choro contido, que faz de tudo para não ser ouvido, ir ficando cada vez mais baixo e distante do outro lado da porta. Culpa. Culpa. Culpa. E você queria tanto ser diferente! Mas você simplesmente não consegue! Não consegue!

Tudo que você faz é escrever esta carta. A única carta que escreveu durante estes 17 anos, 7 meses e 23 dias que esteve em seu quarto. Uma carta que fala um pouco sobre você, que poderia ser destinada a qualquer estranho, para que pudesse conhecê-lo um pouco. Mas ela é destinada a sua mãe. Dizendo que você já montou todos os quebra-cabeças que podia montar. Que não precisa mais passar um prato com alimento no dia seguinte. Que você fez tudo da maneira mais limpa possível, mas, ainda assim (você que sempre pediu tanto e retribui pouco), pede que sua mãe não entre; que mande outro retirá-lo do quarto após todos esses anos de isolamento. Não pede perdão, porque sabe que ela nunca o culpou. E você, inutilmente, lamenta que esta carta seja tão útil quanto foi sua vida.


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sexta-feira, 4 de julho de 2008

A longo prazo, não há escolhas

Tempo passando. Tempo passando.

Não dá pra reverter, você sabe disso. O fluxo é contínuo, você sabe disso.

Você preenche com memórias o intervalo entre o dia que você foi atirado aqui e o dia em que vão te atirar em algum outro lugar.

Você é orgânico, você sabe disso. Um dia você vai apodrecer, você tenta esquecer disso. Trave uma luta contra a natureza e espere a derrota. Ela sempre vence. Mais cedo ou mais tarde, ela vai te engolir. Tudo vai ficar muito mais fácil se você aceitar.

J. F. K., essas são as iniciais de um sujeito que conheci. Não, ele nunca foi presidente dos EUA Ele nunca desfilou em conversíveis, sorrindo e acenando pra multidões.

Foi um menino esquelético. Tímido. Boas notas. Péssimo em esportes. Alvo fácil no colégio. Interesse especial em entomologia (estudo dos insetos). Achava-se parecido com os insetos, especialmente com o louva-a-deus.

Os insetos apresentam exoesqueleto (esqueleto externo de quitina).

O que os teus colegas te dizem no colégio, você não esquece nunca.

J. F. K. odiava quase todo mundo. Riam dele, e ele não conseguia perdoar isso. Sentiam pena dele, e ele não conseguia perdoar isso.

Todos os amigos acabam se tornando chatos ou inconvenientes a longo prazo, você sabe disso.

A vida de J. F. K. não tinha sentido algum para ele até os seus 20 anos. Viver era como ser colocado num carrossel, sem nunca ter pedido por isso, e ser obrigado a esperar que ele pare pra poder saltar fora.

Suicídio estava fora de cogitação; já havia sido um investimento relativamente alto para sua família para não dar resultado algum.

Alguns pais podem não dizer, mas sempre esperam algo de você, e você sabe disso.

Esperar que o dia-a-dia o consuma aos poucos. Como uma goteira de ácido sulfúrico sobre uma barra de aço. Esse era o plano de J. F. K. Sempre sorrindo quando fosse preciso. O Oscar era dele. Desejando feliz Natal e feliz Páscoa. O Globo de Ouro. Enviando cartões postais e indo ao cinema com a namorada. Palma de Ouro em Cannes.

Simplesmente seguia o protocolo. Viver era como redigir um ofício. Segue-se algumas regras e não há erro.

Não há erro. A burocracia é uma velha desdentada tentando te comer vivo.

Até que, quando tinha seus 20 anos, algo mudou.

Às vezes, a rotina é tão confortável que gera dependência. Dopado pelo cotidiano. Melhor que morfina.

Algo preencheu um espaço vago na vida de J. F. K. Os dias não eram mais tão vazios. Ele tinha algo pelo que esperar no dia seguinte. Uma série de TV. “What about me?”. Talvez uma merda para você. Talvez você o ache estúpido. Mas, a longo prazo, tudo é indiferente.

Nenhuma existência é fundamental.

5 anos se passaram desde que descobriu seu novo mundo; e J. F. K. nunca perdeu um episódio. Agora ele trabalhava numa fábrica de disjuntores. Setor administrativo. Um disjuntor parece algo tão idiota que você nem se dá conta de que precisa alguém pra fabricar essa porra. Mas era um negócio lucrativo.

J. F. K. parecia tão idiota que talvez seus colegas de colégio houvessem esquecido que ele tinha sentimentos. Que continuaria existindo depois do colegial.

Sim, ele tinha sentimentos. Sim, ele ainda existia.

O rancor é um dos sentimentos mais duradouros. Isso é uma verdade. Suas vísceras estavam impregnadas de um lixo radioativo que duraria centenas de milhares de anos para se extinguir. Talvez, depois que morresse, seu ódio permanecesse vivo sob a forma de um espectro.

Mas agora tudo havia melhorado. Sua família o considerava uma pessoa normal e ele tinha sua série de TV. “What about me?”. Uma série clichê. Melosa. Sobre um grupo de jovens de uma cidade do interior norte-americano. A história se passava num colégio. Talvez J. F. K. visse no protagonista rebelde, de jaqueta de couro e motocicleta, aquilo que queria ter sido.

Parecia um cara legal. Rodeado de garotas. Bom em esportes, apesar de achá-los estúpidos. Não batia nos garotos esqueléticos.

Os insetos são constituídos por um esqueleto externo, chamado exoesqueleto; você já sabe disso.

J. F. K. chegava em casa às 19 horas. A série começava às 20:30.

Às vezes, a rotina é melhor do que morfina, você já sabe disso. Ir ao trabalho sempre pela mesma rua. Sair de casa e retornar sempre nos mesmos horários. Almoçar sempre no mesmo lugar. Esse tipo de coisa te traz uma segurança que acaba fazendo você esquecer sua falta de propósito.

A longo prazo, tudo é indiferente, você sabe disso.

A longo prazo, não há como ser otimista; no fundo, você sabe disso.

Havia dois meses que o chefe de J. F. K. morava no andar logo acima do seu. Uma cobertura espaçosa.

Quando se mudou deu uma festa. J. F. K. foi obrigado a comparecer. Como dar uma desculpa quando se mora no andar debaixo?

Gravou o episódio da série. No meio da festa, quase não conseguia suportar a ansiedade. Aquele episódio era decisivo. Será que Gracie descobriria que Brian só estava com Jane porque achava que ela tinha leucemia?

Jane jogava sujo, mas acabaria sendo desmascarada. J. F. K. sabia disso.

Não foi daquela vez, mas a profecia se cumpriu. As armações de Jane foram descobertas, no último episódio da série.

A rotina é tão segura que acabamos esquecendo que um dia ela acabará. Como o sujeito que é encontrado enforcado no quarto após conseguir uma gorda aposentadoria.

Quanto tempo J. F. K. poderia suportar sem a sua série?

Ele não odiava seu chefe. Não tinha por que odiar. Sua vida estava numa outra dimensão. Seu dia começava às 20:30 e acabava às 21:20.

Mas e agora?

Seu chefe era um sujeito calvo e obeso de meia idade. Todo mês contratava uma prostituta de uma cidade vizinha para passar uma semana em sua companhia. Criava seu personagem. Dava a ela um nome falso. Uma profissão falsa. Inventava uma história sobre a conquista. E então, o principal, apresentava-a aos amigos. Seu troféu.

No escritório, J. F. K. era seu alvo. Fazia todo o tipo de piada de mau gosto sobre ele. Ridicularizava-o na frente de seus colegas. Esquecia que também havia sido um alvo no colégio, por sempre estar acima do peso.

Dê uma oportunidade às vitimas e elas se tornam algozes.

Toda a diferença entre o torturador e o torturado, o explorador e o explorado, está no fato de que o segundo não teve chance de ser o primeiro.

J. F. K. podia ouvir o som dos passos arrastados de seu chefe quando este se dirigia a sua cama. O quarto dele ficava logo acima do de J. F. K. Tinha noites que tinha a impressão de ouvir seus peidos. Isso sem falar nos rangidos da cama, quando ele contratava uma nova prostituta.

Realmente sentia pena daquelas garotas.

Imaginava-as embaixo daquela bola de sebo e pêlos.

Tudo isso era suportável porque às 20:30 começava “What about me?”

Mas e agora?

J. F. K. comprou uma espingarda calibre 12.

Precisava que as bolas de chumbo se dispersassem na hora do disparo.

Não queria errar o alvo.

À meia noite, ficou em pé sobre sua cama e bateu com o cano da espingarda no teto cinco vezes seguidas.

Não houve nada.

Mais cinco vezes. Nada outra vez.

Tornou a bater até que houve a confirmação. Uma voz conhecida berrou: “J. F. K., que porra você tá fazendo aí embaixo, seu filho da puta? Eu tô tentando dormir!”.

Não havia nenhuma prostituta com ele naquela semana. Isso era bom.

Ele estava deitado em sua cama. Isso era bom.

J. F. K. posicionou-se mo lugar certo e colou a espingarda sob seu queixo.

O último pensamento que passou por sua cabeça foi: “Será que algum pedaço do meu cérebro vai ser encontrado dentro do corpo dele?”.

A longo prazo, não há sobreviventes.


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"Eu li como huannn huann..."

PERDEU, PUFF



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domingo, 8 de junho de 2008

ARCO-ÍRIS RADIOATIVO (céu azul 137)

Esta poesia foi extraída de um livro de minha autoria, ainda não publicado, chamado: CONTOS DE FADO. Foi escrita por Epitáfio, um personagem do livro.


Odeio todos os segredos mais secretos

Que permanecerão em segredo para sempre

Te presenteio com um ramalhete de dejetos

Tragando na fumaça o câncer inerente

A fisionomia tosca de um lábio sem sorriso

O hálito podre de uma boca sem dentes

A podridão é tudo que é preciso

Quando a culpa já não encontra inocentes

Uma canção de louvor entoada aos berros

O êxtase ou qualquer vislumbre de alegria

Enquanto isso, todas as dores que em mim encerro

Transformam o respirar no ritmo da agonia

O pecado original é a reprodução

E meu pecado foi não ser original

O repetir é o pecado capital

A cópia é a originalidade na inovação

Sorria, você é o fruto do ontem

Sorria, uma polpa podre não envolve sementes

Não chore, você serve de adubo para minha árvore

Não chore, no meu pomar todas as plantas são diferentes

A presença do vazio é a ausência do presente

Será que nada que é eterno dura pra sempre?

Ou será que tudo é nada e com a eternidade não é diferente?

Se com 4 letras o nada se torna algo

E se tudo cabe em 4 também

É natural que com 8 eu tenha o universo

Ou será que com 3 ele me tem?

O que vocês debatiam na grande mesa?

Enquanto eu me debatia no chão

Degustavam sofisticadas sobremesas

E eu catava as sobras da mesa com as mãos

Já não há mais alimento lá fora

Talvez devêssemos fazer uma sopa de dinheiro

Calma aí, aguarde sua hora

Eu tenho o direito de comer primeiro

Irmão, você me mataria enquanto durmo?

Bom demais pra ser verdade

Liberta-me desse mundo

E me perdoa por ser covarde

Perceba a gravidade da situação

Há uma força que me puxa para baixo

Quando quero sair do chão

Não acho, não me encaixo, ladeira abaixo

Isso é grave, a grave idade

Isso é grave, a gravidez

Isso é lenda, a feliz idade

Está na cara a insensata tez

Desligue a TV e o som

Esse barulho é o rádio em atividade, radioatividade?

A velhice é tão triste, é um mal da idade, maldade

Um dia tentei ser bom

Recobre o fluxo... fluoxetina

Há tanta serenidade, tanta serotonina

O apocalipse já foi anunciado

Por meninos sujos de jeans rasgado

Somos todos ordinários, infeliz verdade

Somos unidades comuns, mas não somos comunidade

Um muro que me divide ao meio

Metade sonho que passou, metade sonho que não veio

Há tanto código que barra,

Metade pelo dinheiro, metade pela raça

Não admiro o Novo Mundo

Mas me admira o Mundo Novo

Quando tudo é vulgar e sujo,

Sou o mais vulgar de todos

Como é extensa

Essa tortuosa linha de montagem

Sou só mais uma peça

A gangrena e a engrenagem

Girando sobre o eixo

Sem nunca sair do lugar

Me desgasto mas não me queixo

Fui feito para girar

Fiz das tripas coração

Pra não fazer do sonho excremento

Mas me perdi na solidão

Quem me abriga é o relento

Tudo é jogo

Jogo é tudo

Todos gritam: dependência ou morte

Sabe o que é mais absurdo

Por azar não tenho sorte

Veja a grande luz violeta no céu

Um radiante anjo chamado Urânio

Derrete-me os ossos com o calor de seu véu

Deforma meus filhos, membros e crânio

Como matar o tempo que me mata?

Que tal um cigarro?

Sou esperança, membrana, alma

E catarro

De que adianta ser profundo

Num mundo assim tão raso?

O ser humano, o ser imundo

Te amo, te odeio, te mato

Socorro!

Os soldados estão vindo

Com sangue nos olhos

E eu jorro sangue pela boca

Hímen, honra... espólios

A bala zunindo...

Natureza, vadia louca

Se você pudesse ver o que eu vejo

Seu coração derreteria

Um breve lampejo

Dos jardins da agonia

terça-feira, 3 de junho de 2008

Situação Tensa....

Psicologia Infantil







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quinta-feira, 22 de maio de 2008

Esse conto é a primeira coisa que público aqui que não é de minha autoria.
Foi escrito por Chuck Palahniuk
Chama-se "Guts" (vísceras).

Inspire.


Inspire o máximo de ar que conseguir. Essa estória deve durar aproximadamente o tempo que você consegue segurar sua respiração, e um pouco mais. Então escute o mais rápido que puder.

Um amigo meu aos 13 anos ouviu falar sobre "fio-terra". Isso é quando alguém enfia um consolo na bunda. Estimule a próstata o suficiente, e os rumores dizem que você pode ter orgasmos explosivos sem usar as mãos. Nessa idade, esse amigo é um pequeno maníaco sexual. Ele está sempre buscando uma melhor forma de gozar. Ele sai para comprar uma cenoura e lubrificante. Para conduzir uma pesquisa particular. Ele então imagina como seria a cena no caixa do supermercado, a solitária cenoura e o lubrificante percorrendo pela esteira o caminho até o atendente no caixa. Todos os clientes esperando na fila, observando. Todos vendo a grande noite que ele preparou.

Então, esse amigo compra leite, ovos, açúcar e uma cenoura, todos os ingredientes para um bolo de cenoura. E vaselina.

Como se ele fosse para casa enfiar um bolo de cenoura no rabo.

Em casa, ele corta a ponta da cenoura com um alicate. Ele a lubrifica e desce seu traseiro por ela. Então, nada. Nenhum orgasmo. Nada acontece, exceto pela dor.

Então, esse garoto, a mãe dele grita dizendo que é a hora da janta. Ela diz para descer, naquele momento.

Ele remove a cenoura e coloca a coisa pegajosa e imunda no meio das roupas sujas debaixo da cama.

Depois do jantar, ele procura pela cenoura, e não está mais lá. Todas as suas roupas sujas, enquanto ele jantava, foram recolhidas por sua mãe para lavá-las. Não havia como ela não encontrar a cenoura, cuidadosamente esculpida com uma faca da cozinha, ainda lustrosa de lubrificante e fedorenta.

Esse amigo meu, ele espera por meses na surdina, esperando que seus pais o confrontem. E eles nunca fazem isso. Nunca. Mesmo agora que ele cresceu, aquela cenoura invisível aparece em toda ceia de Natal, em toda festa de aniversário. Em toda caça de ovos de páscoa com seus filhos, os netos de seus pais, aquela cenoura fantasma paira por sobre todos eles. Isso é algo vergonhoso demais para dar um nome.

As pessoas na França possuem uma expressão: "sagacidade de escadas." Em francês: esprit de l'escalier. Representa aquele momento em que você encontra a resposta, mas é tarde demais. Digamos que você está numa festa e alguém o insulta. Você precisa dizer algo. Então sob pressão, com todos olhando, você diz algo estúpido. Mas no momento em que sai da festa....

Enquanto você desce as escadas, então - mágica. Você pensa na coisa mais perfeita que poderia ter dito. A réplica mais avassaladora.

Esse é o espírito da escada.

O problema é que até mesmo os franceses não possuem uma expressão para as coisas estúpidas que você diz sob pressão. Essas coisas estúpidas e desesperadas que você pensa ou faz.

Alguns atos são baixos demais para receberem um nome. Baixos demais para serem discutidos.

Agora que me recordo, os especialistas em psicologia dos jovens, os conselheiros escolares, dizem que a maioria dos casos de suicídio adolescente eram garotos se estrangulando enquanto se masturbavam. Seus pais o encontravam, uma toalha enrolada em volta do pescoço, a toalha amarrada no suporte de cabides do armário, o garoto morto. Esperma por toda a parte. É claro que os pais limpavam tudo. Colocavam calças no garoto. Faziam parecer... melhor. Ao menos, intencional. Um caso comum de triste suicídio adolescente.

Outro amigo meu, um garoto da escola, seu irmão mais velho na Marinha dizia como os caras do Oriente Médio se masturbavam de forma diferente do que fazemos por aqui. Esse irmão tinha desembarcado num desses países cheios de camelos, na qual o mercado público vendia o que pareciam abridores de carta chiques. Cada uma dessas coisas é apenas um fino cabo de latão ou prata polida, do comprimento aproximado de sua mão, com uma grande ponta numa das extremidades, ou uma esfera de metal ou uma dessas empunhaduras como as de espadas. Esse irmão da Marinha dizia que os árabes ficavam de pau duro e inseriam esse cabo de metal dentro e por toda a extremidade de seus paus. Eles então batiam punheta com o cabo dentro, e isso os faziam gozar melhor. De forma mais intensa.

Esse irmão mais velho viajava pelo mundo, mandando frases em francês. Frases em russo. Dicas de punhetagem.

Depois disso, o irmão mais novo, um dia ele não aparece na escola. Naquela noite, ele liga pedindo para eu pegar seus deveres de casa pelas próximas semanas. Porque ele está no hospital.

Ele tem que compartilhar um quarto com velhos que estiveram operando as entranhas. Ele diz que todos compartilham a mesma televisão. Que a única coisa para dar privacidade é uma cortina. Seus pais não o vem visitar. No telefone, ele diz como os pais dele queriam matar o irmão mais velho da Marinha.

Pelo telefone, o garoto diz que, no dia anterior, ele estava meio chapado. Em casa, no seu quarto, ele deitou-se na cama. Ele estava acendendo uma vela e folheando algumas revistas pornográficas antigas, preparando-se para bater uma. Isso foi depois que ele recebeu as notícias de seu irmão marinheiro. Aquela dica de como os árabes se masturbam. O garoto olha ao redor procurando por algo que possa servir. Uma caneta é grande demais. Um lápis, grande demais e áspero. Mas escorrendo pelo canto da vela havia um fino filete de vela derretida que poderia servir. Com as pontas dos dedos, o garoto descola o filete da vela. Ele o enrola na palma de suas mãos. Longo, e liso, e fino.

Chapado e com tesão, ele enfia lá dentro, mais e mais fundo por dentro do canal urinário de seu pau. Com uma boa parte da cera ainda para fora, ele começa o trabalho.

Até mesmo nesse momento ele reconhece que esses árabes eram caras muito espertos. Eles reinventaram totalmente a punheta. Deitado totalmente na cama, as coisas estão ficando tão boas que o garoto nem observa a filete de cera. Ele está quase gozando quando percebe que a cera não está mais lá.

O fino filete de cera entrou. Bem lá no fundo. Tão fundo que ele nem consegue sentir a cera dentro de seu pau.

Das escadas, sua mãe grita dizendo que é a hora da janta. Ela diz para ele descer naquele momento. O garoto da cenoura e o garoto da cera eram pessoas diferentes, mas viviam basicamente a mesma vida.

Depois do jantar, as entranhas do garoto começam a doer. É cera, então ele imagina que ela vá derreter dentro dele e ele poderá mijar para fora. Agora suas costas doem. Seus rins. Ele não consegue ficar ereto corretamente.

O garoto falando pelo telefone do seu quarto de hospital, no fundo pode-se ouvir campainhas, pessoas gritando. Game shows.

Os raios-X mostram a verdade, algo longo e fino, dobrado dentro de sua bexiga. Esse longo e fino V dentro dele está coletando todos os minerais no seu mijo. Está ficando maior e mais expesso, coletando cristais de cálcio, está batendo lá dentro, rasgando a frágil parede interna de sua bexiga, bloqueando a urina. Seus rins estão cheios. O pouco que sai de seu pau é vermelho de sangue.

O garoto e seus pais, a família inteira, olhando aquela chapa de raio-X com o médico e as enfermeiras ali, um grande V de cera brilhando na chapa para todos verem, ele deve falar a verdade. Sobre o jeito que os árabes se masturbam. Sobre o que o seu irmãos mais velho da Marinha escreveu.

No telefone, nesse momento, ele começa a chorar.

Eles pagam pela operação na bexiga com o dinheiro da poupança para sua faculdade. Um erro estúpido, e agora ele nunca mais será um advogado.

Enfiando coisas dentro de você. Enfiando-se dentro de coisas. Uma vela no seu pau ou seu pescoço num nó, sabíamos que não poderia acabar em problemas.

O que me fez ter problemas, eu chamava de Pesca Submarina. Isso era bater punheta embaixo d'água, sentando no fundo da piscina dos meus pais. Pegando fôlego, eu afundava até o fundo da piscina e tirava meu calção. Eu sentava no fundo por dois, três, quatro minutos.

Só de bater punheta eu tinha conseguido uma enorme capacidade pulmonar. Se eu tivesse a casa só para mim, eu faria isso a tarde toda. Depois que eu gozava, meu esperma ficava boiando em grandes e gordas gotas.

Depois disso eram mais alguns mergulhos, para apanhar todas. Para pegar todas e colocá-las em uma toalha. Por isso chamava de Pesca Submarina. Mesmo com o cloro, havia a minha irmã para se preocupar. Ou, Cristo, minha mãe.

Esse era meu maior medo: minha irmã adolescente e virgem, pensando que estava ficando gorda e dando a luz a um bebê retardado de duas cabeças. As duas parecendo-se comigo. Eu, o pai e o tio. No fim, são as coisas nais quais você não se preocupa que te pegam.

A melhor parte da Pesca Submarina era o duto da bomba do filtro. A melhor parte era ficar pelado e sentar nela.

Como os franceses dizem, Quem não gosta de ter seu cú chupado? Mesmo assim, num minuto você é só um garoto batendo uma, e no outro nunca mais será um advogado.

Num minuto eu estou no fundo da piscina e o céu é um azul claro e ondulado, aparecendo através de dois metros e meio de água sobre minha cabeça. Silêncio total exceto pelas batidas do coração que escuto em meu ouvido. Meu calção amarelo-listrado preso em volta do meu pescoço por segurança, só em caso de algum amigo, um vizinho, alguém que apareça e pergunte porque faltei aos treinos de futebol. O constante chupar da saída de água me envolve enquanto delicio minha bunda magra e branquela naquela sensação.

Num momento eu tenho ar o suficiente e meu pau está na minha mão. Meus pais estão no trabalho e minha irmão no balé. Ninguém estará em casa por horas.

Minhas mãos começam a punhetar, e eu paro. Eu subo para pegar mais ar. Afundo e sento no fundo.

Faço isso de novo, e de novo.

Deve ser por isso que garotas querem sentar na sua cara. A sucção é como dar uma cagada que nunca acaba. Meu pau duro e meu cú sendo chupado, eu não preciso de mais ar. O bater do meu coração nos ouvidos, eu fico no fundo até as brilhantes estrelas de luz começarem a surgir nos meus olhos. Minhas pernas esticadas, a batata das pernas esfregando-se contra o fundo. Meus dedos do pé ficando azul, meus dedos ficando enrugados por estar tanto tempo na água.

E então acontece. As gotas gordas de gozo aparecem. É nesse momento que preciso de mais ar. Mas quando tento sair do fundo, não consigo. Não consigo colocar meus pés abaixo de mim. Minha bunda está presa.

Médicos de plantão de emergência podem confirmar que todo ano cerca de 150 pessoas ficam presas dessa forma, sugadas pelo duto do filtro de piscina. Fique com o cabelo preso, ou o traseiro, e você vai se afogar. Todo o ano, muita gente fica. A maioria na Flórida.

As pessoas simplesmente não falam sobre isso. Nem mesmo os franceses falam sobre tudo. Colocando um joelho no fundo, colocando um pé abaixo de mim, eu empurro contra o fundo. Estou saindo, não mais sentado no fundo da piscina, mas não estou chegando para fora da água também.

Ainda nadando, mexendo meus dois braços, eu devo estar na metade do caminho para a superfície mas não estou indo mais longe que isso. O bater do meu coração no meu ouvido fica mais alto e mais forte.

As brilhantes fagulhas de luz passam pelos meus olhos, e eu olho para trás... mas não faz sentido. Uma corda espessa, algum tipo de cobra, branco-azulada e cheia de veias, saiu do duto da piscina e está segurando minha bunda. Algumas das veias estão sangrando, sangue vermelho que aparenta ser preto debaixo da água, que sai por pequenos cortes na pálida pele da cobra. O sangue começa a sumir na água, e dentro da pele fina e branco-azulada da cobra é possível ver pedaços de alguma refeição semi-digerida.

Só há uma explicação. Algum horrível monstro marinho, uma serpente do mar, algo que nunca viu a luz do dia, estava se escondendo no fundo escuro do duto da piscina, só esperando para me comer.

Então... eu chuto a coisa, chuto a pele enrugada e escorregadia cheia de veias, e parece que mais está saindo do duto. Deve ser do tamanho da minha perna nesse momento, mas ainda segurando firme no meu cú. Com outro chute, estou a centímetros de conseguir respirar. Ainda sentido a cobra presa no meu traseiro, estou bem próximo de escapar.

Dentro da cobra, é possível ver milho e amendoins. E dá pra ver uma brilhante esfera laranja. É um daqueles tipos de vitamina que meu pai me força a tomar, para poder ganhar massa. Para conseguir a bolsa como jogador de futebol. Com ferro e ácidos graxos Ômega 3.

Ver essa pílula foi o que me salvou a vida.

Não é uma cobra. É meu intestino grosso e meu cólon sendo puxados para fora de mim. O que os médicos chamam de prolapso de reto. São minhas entranhas sendo sugadas pelo duto.

Os médicos de plantão de emergência podem confirmar que uma bomba de piscina pode puxar 300 litros de água por minuto. Isso corresponde a 180 quilos de pressão. O grande problema é que somos todos interconectados por dentro. Seu traseiro é apenas o término da sua boca. Se eu deixasse, a bomba continuaria a puxar minhas entranhas até que chegasse na minha língua. Imagine dar uma cagada de 180 quilos e você vai perceber como isso pode acontecer.

O que eu posso dizer é que suas entranhas não sentem tanta dor. Não da forma que sua pele sente dor. As coisas que você digere, os médicos chamam de matéria fecal. No meio disso tudo está o suco gástrico, com pedaços de milho, amendoins e ervilhas.

Essa sopa de sangue, milho, merda, esperma e amendoim flutua ao meu redor. Mesmo com minhas entranhas saindo pelo meu traseiro, eu tentando segurar o que restou, mesmo assim, minha vontade é de colocar meu calção de alguma forma.

Deus proíba que meus pais vejam meu pau.

Com uma mão seguro a saída do meu rabo, com a outra mão puxo o calção amarelo-listrado do meu pescoço. Mesmo assim, é impossível puxar de volta.

Se você quer sentir como seria tocar seus intestinos, compre um camisinha feita com intestino de carneiro. Pegue uma e desenrole. Encha de manteiga de amendoim. Lubrifique e coloque debaixo d'água. Então tente rasgá-la. Tente partir em duas. É firme e ao mesmo tempo macia. É tão escorregadia que não dá para segurar.

Uma camisinha dessas é feita do bom e velho intestino.

Você então vê contra o que eu lutava.

Se eu largo, sai tudo.

Se eu nado para a superfície, sai tudo.

Se eu não nadar, me afogo.

É escolher entre morrer agora, e morrer em um minuto.

O que meus pais vão encontrar depois do trabalho é um feto grande e pelado, todo curvado. Mergulhado na árgua turva da piscina de casa. Preso ao fundo por uma larga corda de veias e entranhas retorcidas. O oposto do garoto que se estrangula enquanto bate uma. Esse é o bebê que trouxeram para casa do hospital há 13 anos. Esse é o garoto que esperavam conseguir uma bolsa de jogador de futebol e eventualmente um mestrado. Que cuidaria deles quando estivessem velhinhos. Seus sonhos e esperanças. Flutuando aqui, pelado e morto. Em volta dele, gotas gordas de esperma.

Ou isso, ou meus pais me encontrariam enrolado numa toalha encharcada de sangue, morto entre a piscina e o telefone da cozinha, os restos destroçados das minhas entranhas para fora do meu calção amarelo-listrado.

Algo sobre o qual nem os franceses falam.

Aquele irmão mais velho na Marinha, ele ensinou uma outra expressão bacana. Uma expressão russa. Do jeito que nós falamos "Preciso disso como preciso de um buraco na cabeça...," os russos dizem, "Preciso disso como preciso de dentes no meu cú......

Mne eto nado kak zuby v zadnitse.

Essas histórias de como animais presos em armadilhas roem a própria perna fora, bem, qualquer coiote poderá te confirmar que algumas mordidas são melhores que morrer.

Droga... mesmo se você for russo, um dia vai querer esses dentes.

Senão, o que você pode fazer é se curvar todo. Você coloca um cotovelo por baixo do joelho e puxa essa perna para o seu rosto. Você morde e rói seu próprio cú. Se você ficar sem ar você consegue roer qualquer coisa para poder respirar de novo.

Não é algo que seja bom contar a uma garota no primeiro encontro. Não se você espera por um beijinho de despedida. Se eu contasse como é o gosto, vocês não comeriam mais frutos do mar.

É difícil dizer o que enojaria mais meus pais: como entrei nessa situação, ou como me salvei. Depois do hospital, minha mãe dizia, "Você não sabia o que estava fazendo, querido. Você estava em choque." E ela teve que aprender a cozinhar ovos pochê.

Todas aquelas pessoas enojadas ou sentindo pena de mim....

Precisava disso como precisaria de dentes no cú.

Hoje em dia, as pessoas sempre me dizem que eu sou magrinho demais. As pessoas em jantares ficam quietas ou bravas quando não como o cozido que fizeram. Cozidos podem me matar. Presuntadas. Qualquer coisa que fique mais que algumas horas dentro de mim, sai ainda como comida. Feijões caseiros ou atum, eu levanto e encontro aquilo intacto na privada.

Depois que você passa por uma lavagem estomacal super-radical como essa, você não digere carne tão bem. A maioria das pessoas tem um metro e meio de intestino grosso. Eu tenho sorte de ainda ter meus quinze centímetros. Então nunca consegui minha bolsa de jogador de futebol. Nunca consegui meu mestrado. Meus dois amigos, o da cera e o da cenoura, eles cresceram, ficaram grandes, mas eu nunca pesei mais do que pesava aos 13 anos.

Outro problema foi que meus pais pagaram muita grana naquela piscina. No fim meu pai teve que falar para o cara da limpeza da piscina que era um cachorro. O cachorro da família caiu e se afogou. O corpo sugado pelo duto. Mesmo depois que o cara da limpeza abriu o filtro e removeu um tubo pegajoso, um pedaço molhado de intestino com uma grande vitamina laranja dentro, mesmo assim meu pai dizia, "Aquela porra daquele cachorro era maluco."

Mesmo do meu quarto no segundo andar, podia ouvir meu pai falar, "Não dava para deixar aquele cachorro sozinho por um segundo...."

E então a menstruação da minha irmã atrasou.

Mesmo depois que trocaram a água da piscina, depois que vendemos a casa e mudamos para outro estado, depois do aborto da minha irmã, mesmo depois de tudo isso meus pais nunca mencionaram mais isso novamente.

Nunca.

Essa é a nossa cenoura invisível.

Você. Agora você pode respirar.

Eu ainda não.


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