segunda-feira, 14 de setembro de 2009

SOBERBA

Nunca fui supersticioso. Não acredito nessa história de sobrenatural e coisa que o valha, mas ontem me ocorreu algo estranho. Bebi um pouco, talvez não tão pouco, porque, cada vez com mais freqüência, o álcool parece ser uma das poucas alternativas que vale o custo-benefício (embora provavelmente também não valha; pelo menos, não se descobre isso a curto prazo). Voltava para casa sentindo um tipo de alívio, encarando as coisas com menos seriedade, de uma maneira que somente a santa embriaguez proporciona. Foi então que um senhor, sentado ao chão, enrolado em um velho cobertor surrado e com as costas encostadas contra o muro me disse:

- Você gosta de escrever, não gosta?

Provavelmente, não sei direito por que, se eu não estivesse bêbado, não teria lhe dado ouvidos. Mas, no estado em que eu estava, senti uma incontrolável vontade de conversar com ele, por pouco não me sentei ao chão do seu lado.

- Gosto... gosto sim – eu ri. – O que é mais trágico nisso tudo é que eu gosto de verdade. Não sei se você me entende, mas tem muita gente por aí que lê sem gostar, e escreve sem gostar também. Mas eu, eu sou um desses desgraçados que precisa disso... mas não me orgulho. É como se fosse uma fuga, sabe? Quando leio, estou em um outro lugar, que não nesta rua miserável em que estamos agora, e nem deitado em minha cama a dois quarteirões daqui. É algo parecido com o álcool... E quando eu escrevo... quando eu escrevo, é diferente, fujo para longe também, embora muitas vezes aquilo do que desejo fugir acabe vindo à tona. Mas quando se escreve, o controle é fascinante, você me entende? Não importa que imprevisto possa acontecer na porcaria da minha história, para mim, nunca será um imprevisto. Eu estou no controle, lá, neste lugar para onde eu fujo. Não importa o quanto você seja sensível, passional e inspirado... a grande verdade é que a literatura é uma arte racional.

O velho riu. Dentes amarelos corroídos, com manchas escuras.

- Gosto de você.

Não sei por qual razão, quando ele me disse aquilo quase caí em prantos. Choro pouco, lembro de ter chorado no máximo uma meia dúzia de vezes em minha vida. Mas há algumas situações que aos outros parecem banais que a mim soam tão deprimentes que mal consigo me controlar. Senti vontade de me ajoelhar, de beijar aquele rosto sujo e feio e agradecer... agradecer mil vezes por um ser vivo, que sente, pensa e é livre, ter escolhido gostar de mim. Senti vontade de dizer que também gostava dele. Não, senti vontade de dizer que o amava por ter me dito aquilo, naquele momento em que eu voltava embriagado para a minha casa... lembrei que tinha algum dinheiro no banco, sacaria tudo, até o último centavo e daria a ele. Porque, afinal, ele gostava de mim, e isso era tanto! Quase mais do que eu podia suportar naquela hora.

- Mas, sei que isso é algo difícil de se ouvir, mas você não é bom. Digo, na literatura...você não é bom. Não que seja ruim, mas não é brilhante.

Dor. Eu quis morrer. Quis matar.

- Por que você diz isso? Você me odeia, não é mesmo? Olha, você ainda tem esse seu cobertor velho, e esse seu sapato furado. E eu, o que eu tenho? Eu só tenho as minhas histórias e mais nada. Sei que você não vai entender, mas está vendo esse meu casaco quente e confortável, essa minha calça limpa e bem passada, ou esse meu sapato lustrado... eu não tenho nada disso. Eu nunca tive.

- Eu entendo. Eu sei disso tudo que você está me falando. Sei que nós dois temos muito pouco.

- Então, por que me diz isso? Por acaso gostaria que eu roubasse suas roupas e o deixasse jogado ao relento nesta noite fria?

- Só disse isso que lhe disse porque posso ajudá-lo. Hoje é um daqueles dias pelos quais você sempre espera e que, no fundo, teme que nunca chegue. Não importa como, posso fazer algo por você. Posso fazer com que você escreva como ninguém, as histórias mais criativas, as idéias mais originais... Posso fazer de você o melhor escritor que já existiu.

Talvez pela bebida, não sei direito, mas o fato é que acreditei piamente naquilo que o velho me falava.

- Por favor, por favor faça isso – disse tombando de joelhos, eufórico, olhos marejados. – Livre-me da mediocridade na única coisa em que me importa ser bom.

- Mas há um porém. Ninguém nunca poderá ler uma linha sequer do que você escrever a partir de então. Será o melhor de todos, mas ninguém além de você saberá disso. Está disposto a pagar esse preço?

Bem, como você está lendo este texto, sabe que escolha eu tomei. Aquele velho parecia muito sábio, de uma maneira até mesmo fantástica. No entanto, o que ele não se deu conta é que em momento algum estive realmente surpreso. Afinal, ele estava em minha história, o único lugar em que controlo tudo, e não há um imprevisto sequer.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

CURTO DIÁLOGO

Ele andava pela rua, distraído como sempre. Absorto? Ela andava pela rua. O fim de mais um dia de trabalho. Um pouco ressentida, pensava em algo que devia ter dito quando a ofenderam, mas que não disse. De repente, ele a aborda:

- Olha, eu sei que isso vai parecer estranho... mas eu te vi caminhando e, quando nossos olhos se encontraram, pensei, será que você pode me ajudar?

- Pois não? _ disse ela num tom complacente.

- Acho que não é isso que você pode estar pensando... Eu não quero nenhuma informação, nem nada do gênero. Eu só pensei que talvez você pudesse me ajudar... se acha que não, por favor, me diga agora; se não disser, será muito pior mais tarde. E então, o que você me diz?...