Havia já algum tempo que
ele tinha chegado a esta conclusão: se quisesse produzir algo realmente
interessante e único, era preciso ter vivido algo realmente interessante e
único. Tinha uma chance real diante de si e teve a sensação de que tudo se
encaixava perfeitamente demais para ser apenas coincidência. Um outdoor das
forças armadas convocando os “corajosos para defender os oprimidos” e pregando
o uso da “força em prol da justiça”. Achou o anúncio apelativo e cheio de
clichês, mas sabia que os clichês só eram repetidos porque funcionavam e teve
de admitir que a coisa havia mexido com ele. Ainda mais levando em conta o
sonho que tivera recentemente. O outdoor pregava o alistamento espontâneo para
auxiliar a população de um pequeno país do outro lado do oceano que vivia uma
espécie de holocausto desde que o ditador que assumira o poder havia ordenado
o extermínio de todos os descendentes de uma tribo rival a sua. O sonho era
sobre ele correndo com um fuzil em mãos no meio de uma batalha, procurava
qualquer coisa para servir de proteção. Os seus estavam deitados na relva e só
ele corria (porque precisava correr). O campo estava aberto demais e, quando
teve a sensação de que iria dar merda, sentiu um tiro atravessando o seu braço
direito. Acordou em sua cama com este formigando embaixo de seu corpo.
Alistou-se ainda naquele
dia. O excesso de reflexão só promovia dúvidas e era favorável à comodidade.
Havia servido ao exército por dois anos apenas para ter certeza absoluta de que
não gostava daquilo. Era totalmente contra guerras e, além do que lera na
internet e vira pela TV, não conhecia nada daquele povo que agora perecia em
uma. O motivo de seu alistamento era puramente artístico. Queria ser escritor e
concluíra que para “quebrar a dormência” de sua criatividade precisava de uma
experiência intensa. Como Salinger ou Hemingway. Admirava especialmente o
último. Tinha certeza de que muito do que ele escrevera se devia àquilo que
havia vivido. Nunca quis se aprofundar demais em sua biografia para evitar
possíveis decepções, preferia ficar com a imagem que havia construído a seu
respeito baseado nos livros dele que havia lido. Claro que sabia da história do
rifle de caça. Apesar de ser contra o suicídio, julgava que, no caso em questão,
havia sido mais uma defesa da dignidade. Quando a vida, de modo desleal,
tentava tirá-lo do controle da situação, ele venceu a batalha. Este era o bom e
velho Hemingway.
O incrível escritor
soldado até já havia escrito algumas coisas... mas faltava-lhe intensidade e,
quando tentava empregá-la, soava artificial. Em casa, na hora do jantar,
comunicou o pai de sua decisão (viviam juntos só os dois desde que a mãe
perdera a dura luta contra a leucemia). Este parou o garfo a meio caminho entre
o prato e a boca e disse apenas, “muito bem, filho”. No íntimo, carregava uma
preocupação crescente desde que o filho passara a frequentar mostras artísticas
e feiras-de-não-sei-que-porra que, deus nos livre, sempre podem ser coisas de
bicha. Não havia antídoto melhor para isso do que uma guerra.
Naquela noite, na hora do
banho, o incrível escritor soldado examinou seu braço direito refletido no
espelho. Imaginou como ele ficaria com uma cicatriz. Seria perfeito. Isso
também impressionaria as garotas. Imaginou-se fumando sem camisa à janela
depois do sexo, a garota levanta e se chega junto dele. De repente, percebe a
cicatriz, toca cuidadosamente nela e pergunta, “como aconteceu?”; ele responde,
“se não se importa, preferia não falar sobre isso”; ela insiste, “foi na
guerra, não foi?”; ele a olha com um olhar de quem já viu o que de mais
terrível a vida tem para mostrar, traga o seu cigarro e volta-se para a janela,
como se em algum lugar lá fora, os demônios de seu passado ainda estivessem à
solta, perseguindo-o.
Definitivamente, precisava
de uma cicatriz. Se não a conseguisse na guerra, providenciaria uma. Poderia esquentar
uma faca, uma chave de fenda ou quem sabe uma chave de roda... quando chegasse
a hora, pensaria em alguma coisa. Devia doer pra caralho, de qualquer forma,
valeria a pena. E poderia comprar aquelas pomadas ou sprays anestésicos que os
tatuadores usam... Será que o Hemingway tinha alguma cicatriz? Sem dúvida devia
ter, o cara era tipo um Clint Eastwood da literatura. Filha da mãe, além de ser
um escritor reconhecido no mundo todo, ainda devia fazer um sucesso desgraçado
com a mulherada.
Era a hora de se
concentrar em sua própria história. Imaginou o dia em que o ditador se renderia,
ou seria preso, morto ou coisa que o valha, e ele, o incrível escritor soldado,
entraria na praça central sobre um tanque, ao lado de seus companheiros,
enquanto a multidão os aclamava. Verdadeiros heróis. Não teriam sobrado muitos
de seu batalhão, talvez ele e mais uma meia dúzia. Sim, a guerra era cruel.
Seis meses depois, a
realidade tomava o lugar da fantasia e ele desembarcava, ao lado de mais 150
soldados, num local de mata fechada. Ainda quando estavam no rio, já era
possível ouvir o som das explosões e das balas zunindo. Depois de pouco mais de
meia hora de caminhada, entravam na zona de conflito. O incrível escritor soldado
levanta o mosquetão e corre em direção ao front. Queria dar uma página de
abertura impactante ao diário que carregava dentro da farda.
Um choque o atira para
trás e tem a sensação de ter sido partido ao meio. Leva a mão à barriga e sente
o contato morno que temia. Foi considerado a primeira baixa oficial de seu
batalhão. O médico que atestou sua morte diria ao capitão que a bala penetrou o
fígado, causou um efeito inicial de vácuo que culminou com uma explosão do
órgão no momento da saída. Quanto ao incrível escritor soldado, os últimos
pensamentos que passaram por sua consciência foram, “Porra! No sonho, era no
braço... que isso? Que fedor! Puta que pariu, não acredito que me caguei!”