segunda-feira, 26 de agosto de 2013

MISSÃO NÃGAS

Eu estava andando pela rua num dia de chuva e a coisa mais estranha aconteceu comigo, de repente, eu não sabia mais de onde estava vindo e nem para onde ia. Juro, foi realmente assim. E quando o desespero já começava a bater, vi um sujeito, que eu não conhecia, que andava, despreocupadamente, se molhando com um capuz na cabeça e com um capacete de astronauta na mão. Sem saber direito por que, cheguei ao seu lado e dividi meu guarda-chuva com ele. Ele se virou para mim e sorriu. E me senti bem. E sabia que ele também se sentia bem naquele momento. Andamos sem precisar falar um com o outro, e não houve desconforto nenhum. Ele chutou uma lata que estava caída no chão. Quando cheguei perto, chutei também. Percebi que estávamos conectados de um jeito difícil de explicar. Que, ao chutar a mesma lata, tínhamos feito um voto profundo.
         - Pra onde você está indo? – me perguntou, de um modo que me fez pensar que ele já soubesse a resposta.
         - Você vai achar isso meio estranho, mas a verdade é que não sei responder. Tenho andado meio confuso nesses últimos tempos – falei, enquanto olhava fascinado para os incontáveis círculos que se desenhavam no chão com o cair dos pingos de chuva.
         - Nem esquente, as pessoas mais legais são sempre um pouco confusas – ele sorriu com o canto dos lábios, fechando ligeiramente um dos olhos.
         - Pra onde você está indo? Quem sabe eu posso te acompanhar com o guarda-chuva até lá? – perguntei, talvez, querendo fazer um favor mais a mim do que a ele.
         - Estou indo reto... E pra frente...
         - Ótimo – respondi contente. – É justamente para onde eu pensava em ir.
          Caminhamos mais um tempo lado a lado. Eu segurava no cabo do guarda-chuva e ele um pouco mais acima, na parte de metal. Caminhamos calados até que, numa esquina, ele disse:
         - Eu fico aqui.
         Senti o ar me faltar por um momento. Uma parte de mim queria acreditar que caminharíamos reto... e pra frente... para sempre. Mas outra parte sabia que há as esquinas e que o grande truque está em deixar o egoísmo de lado e saber quando as pessoas precisam dobrar em alguma delas (por mais que isso te deixe devastado).
         - Olha só, eu não gosto muito desse lance de despedidas muito longas – disse ele, soltando o guarda-chuva.
         - É, parece mesmo que a gente tem algumas coisas em comum – sorri.
         - A história toda é meio complicada e comprida e não vai dar pra explicar agora, mas, no bolso da tua calça, tem um pedaço de papel com um endereço do lugar pra onde você precisa ir. Basta seguir reto... e pra frente...
         Eu fiquei surpreso com aquela conversa, mas, às vezes, as coisas são assim mesmo, estranhas e confusas. E pode ser pior tentar entender.
         - OK – respondi, aceitando que não havia outra resposta.
         Ele se virou e foi andando em outra direção.
         - Boa viagem! – gritei.
         - Quem disse que vou viajar?
         Apontei para o capacete de astronauta em sua mão. Ele sorriu e piscou para mim. Vi ele entrando num táxi e indo embora. Então, segui reto... e pra frente... e quando dei por mim, estava diante do endereço que ele havia me passado. Era a minha casa e (acredite!) era a casa dele também. O tal sujeito era meu irmão. Nossa mãe me explicou que ele tinha ido atrás de mim, porque eu havia saído sem destino quando soube que ele iria numa viagem pra um lugar muito... muito distante. Demorou um pouco para que as coisas que ela me disse fizessem sentido. Depois, especialistas falaram que eu havia tido o que chamam de amnésia dissociativa, uma perda repentina de memória e identidade diante de um episódio muito estressante.
         Esse meu irmão era um tipo de astronauta bastante especial. Ele estava de viagem marcada para um planeta distante, com uma missão super importante. Parece que os habitantes deste tal planeta estavam muito preocupados com assuntos complexos, que demandavam muito tempo e responsabilidade. Logo, esses seres estavam correndo sérios riscos de se tornarem a espécie mais chata da galáxia. Por isso, recrutaram meu irmão, ninguém era mais indicado do que ele para evitar esta catástrofe. Ele tinha algumas armas secretas para esta missão, dentre as quais a receita de um molho de cachorro-quente picante e uma dança frenética dos anos 80 (certamente ele se sairia bem).
         Eu chorei e sofri muito quando minha mãe me fez lembrar de tudo isso. Mas nossa família é grande e meus outros irmãos e irmãs precisam de mim, assim como eu preciso deles. A única coisa que continuava doendo era a saudade, só que acontece que um dia desses eu tive uma surpresa e tanto! Fui levar meu irmão mais novo a uma exposição de pequenos animais excêntricos (para ver, principalmente, um hamster de gravata borboletas que andava sobre duas patas e ainda levava em outra uma pequena bandeja com uma garrafa e duas taças em miniatura) quando começou a chover. Apenas eu havia levado guarda-chuva e, durante a volta, precisamos dividi-lo.
         Foi então que ouvimos a voz do meu irmão astronauta. Quando nos demos por vencidos e decidimos acreditar naquilo que nossos ouvidos escutavam, descobrimos que ele havia instalado uma espécie de comunicador em meu guarda-chuva que só funcionava se duas pessoas o estivessem dividindo (isso era mesmo a cara dele!). Contou-nos que sua missão estava correndo melhor do que o esperado, a única coisa preocupante era o risco de obesidade para os adeptos do cachorro-quente picante que não gostavam de dançar (de qualquer maneira, esse imprevisto vinha sendo superado com a introdução de alternativas, como a prática do bete-ombro).

         Sempre que eu e meus irmãos queremos notícias dele, saímos pela rua em dois, três, quatro, cinco... sob o mesmo guarda-chuva (inclusive nos dias de sol). Obviamente atraímos todos os tipos de olhares das pessoas que passam por nós. Claro que poderíamos falar com ele de dentro de nossa casa, protegidos pelas paredes, já que o dispositivo funcionaria do mesmo jeito. Acontece que não teria a mesma graça, e sabemos que nosso irmão astronauta iria gostar muito mais de nos ver andando pela rua como um bando de lunáticos apinhados sob o mesmo guarda-chuva (o que, convenhamos, é realmente muito mais divertido).