segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Inominável

Havia um homem que jurava ter visitado um outro planeta. Como tinha sido a viagem até lá, aqui se faz irrelevante. O que realmente intriga e, na opinião deste narrador, angustia, é uma outra questão. O homem não relatava ter visto os clássicos homenzinhos verdes de olhos esbugalhados, nem paisagens futurísticas de cores púrpuras. O que ele dizia era algo muito mais impressionante. Ele dizia que simplesmente não podia relatar. Que as cores que vira nunca antes tinha visto em nosso mundo; que os seres que tinha visto lá, eram completamente diferentes dos de nosso planeta, sendo impossível fazer qualquer analogia. Peço ao leitor que se coloque nesta situação. Imagine que a cor roxa não existe em nosso planeta e que, de alguma forma, somente você teve acesso a ela. Como descrevê-la aos outros?

Havia um pianista tido como genial por seus contemporâneos. Suas apresentações lotavam teatros e tocava apenas músicas que ele mesmo compunha. De repente, de um dia para o outro, passou a compor melodias que aparentemente não tinham harmonia alguma. Era como se um leigo houvesse se sentado ao piano e tivesse começado a bater os dedos aleatoriamente nas teclas. No entanto, o ar de satisfação que havia no semblante deste compositor e o ânimo com que falava de suas novas canções deixavam seu público completamente confuso. Seria uma brincadeira? Não, ele não era do tipo que se prestava a este tipo de humor. Teria ficado louco? Não apresentava nenhuma alteração em suas faculdades cognitivas. Teria então, de alguma forma, aquele homem percebido algum sentido naquela seqüência aparentemente aleatória de notas; teria ele, de alguma forma, tido acesso a um tipo especial de harmonia que todos os outros não podiam compreender e que ele jamais poderia explicar ou descrever. Pergunto-me o que seria mais angustiante, supor que existe algum tipo de harmonia que não está ao meu alcance, ou, alcançá-la e não poder compartilhá-la?

Havia um homem, entre 30 e 35 anos de idade, emprego estável e casado há quase 10 anos. Seu relacionamento com a esposa já não tinha nada de especial; não raro, pensava em outras mulheres durante o ato sexual. Nunca a traíra efetivamente, levando em conta o que socialmente se considera adultério; mas inúmeras vezes tivera vontade. A vida resumia-se a uma rotina que não era ruim e nem satisfatória. Fazia planos de como aumentar sua renda, não exatamente por ambição, apenas porque não havia mais nada para planejar ou almejar. Sua esposa ficou grávida, achou legal; jamais confessaria, mas também não ficou assim tão empolgado como achava que deveria. Sentia uma certa culpa por isso. Alguns meses depois pegou seu filho pela primeira vez nos braços. Aquilo que sentia naquele momento era algo que dava sentido a todos os anos que até então vivera, e a todas as coisas que o cercavam. Era como se um filtro que não o deixava ver um tipo especial de beleza houvesse se rompido naquele momento. Quando voltou do hospital para sua casa naquele dia, ele escreveu estas linhas: “Era como se houvesse algo entre o coração dele e o meu, não sei dizer o quê. Parecia que eu desejava que nossos corpos se fundissem, que o corpo dele entrasse em meu peito para que pudesse protegê-lo de tudo. Inúteis palavras, que não sentem”.

Pelas ruas perambulava um homem. Dizia palavras ininteligíveis, sílabas que juntas não faziam nenhum sentido para quem as ouvia. Mas ele as proferia com uma energia que quase chegava a ser comovente. Trajes sujos, cabelos desgrenhados, completamente ignorado por todos que passavam. O diagnóstico: esquizofrenia. Mas este narrador, lá no íntimo, com medo de ser tachado de louco por si próprio, chegou a se perguntar: “E se aquelas palavras, unidas numa sentença, realmente possuem alguma lógica? E se realmente compõem alguma mensagem?”.

Às vezes penso nos lugares bonitos do mundo que nunca vou conhecer, mas isso não me deixa assim tão triste. O que realmente me causa angústia é pensar que pode haver um livro que eu iria achar fantástico, uma música que seria minha preferida, mas que nunca vou ter a oportunidade de conhecer, por uma série de fatores, obviamente, inclusive geográficos e comerciais. Imaginar isso é terrível, mas pior do que não conhecer as produções das pessoas é não conhecer as próprias pessoas. Isso me atormenta ainda mais. Pensar que alguém que passa ao meu lado na rua pode ter idéias que nunca me ocorreram; pode ter hábitos que eu acharia curiosos e divertidos; pode conhecer uma poesia que eu acharia fantástica, mas que nunca li; pode conhecer uma piada que eu acharia a mais engraçada de todas, mas que nunca ouvi. Pensar que seria bom conversar com essa pessoa estranha, e que ela também acharia bom conversar comigo. Pensar que essa conversa mudaria um pouco de nós dois, mas que isso nunca vai acontecer, por um motivo que eu não sei dizer direito qual é... Porque as pessoas não conversam com estranhos a não ser que haja um motivo, e as palavras não conseguem explicar direito por que isso é assim.

A comunicação é o que faz nossas vidas. É a relação o que me define e me liberta, é a ponte que liga minha ilha a todas aquelas que me cercam. Mas a ponte é estreita e minha ilha não pode vazar por ela. Há tantas coisas que me intrigam e há tanto indizível que precisa ser dito. Por exemplo, há algo que eu precisava dizer quando comecei este texto. E pior do que não saber o que é isso que precisava ser dito, é saber que não caberia nas linhas acima, nem em tantas quantas eu ousasse me estender. Mas o que realmente me intriga é pensar que pode haver uma única palavra em algum outro planeta, ou criada por algum louco que perambula pelas praças, uma única palavra que diz tudo aquilo que eu tanto precisava dizer. Mas, como não encontro, ou, quem sabe até encontrá-la, fico com a citação de uma vida, surpresa, diante da força de outra: “Inúteis palavras, que não sentem”.


terça-feira, 7 de outubro de 2008

Sentimento da Vida

Ângela desce exausta do metrô. A faculdade a desgasta e nem desperta muito seu interesse. Nunca em toda sua vida encontrou uma única pessoa com quem realmente se identificasse. O estágio é terrível, mas precisa do dinheiro. Gosta de pintar paisagens bonitas usando tinta guache e os próprios dedos em vez de pincel, isso a deixa um pouco mais alegre, mas não dá dinheiro. Catalogar pedidos, controlar estoque, pregar etiquetas dá dinheiro. Pouco, mas dá. Só que também parece roubar aos poucos toda a beleza que ela consegue ver na vida. Mas ela precisa comer, pagar aluguel, comprar sapato e escova de dentes. E ninguém compra um quadro feito com tinta guache, retratando um sol sorridente e um coelho pulando corda.

A vida é estranha, Ângela não pensa isso claramente enquanto está saindo do metrô; mas alguma parte dela sente essa estranheza. A vida parece ser um eterno suprir de necessidades na esperança de dias em que haja algo mais. Tais dias virão? Se não for essa esperança, o que a levará a comprar a próxima escova de dentes? Ângela só quer chegar o mais rápido o possível em sua casa (uma kitchenette alugada, de 3 cômodos) e pintar um arco-íris com tinta guache na parede de seu quarto. Se não fizer isso, sabe que não agüentará ir ao seu estágio no dia seguinte, nem à faculdade ou ao supermercado...

Ângela sai da estação de metrô. Quase é atropelada por uma senhora bastante idosa empurrando um carrinho de madeira improvisado, cheio de latas e papéis velhos. Dentro dele, também há uma garotinha, carregando no colo, com bastante cuidado, um bebê um pouco menor do que ela. Ângela sente uma dor estranha ao ver aquilo, tenta segurar o choro, mas uma lágrima teimosa desliza por seu rosto. Não era apenas compaixão que havia naquela dor. Também havia perdão. Naquele momento, em que seu coração parecia querer gritar algo, Ângela perdoava a tudo e a todos, inclusive a ela própria.

domingo, 5 de outubro de 2008

Sobre Perdão e Liberdade

Hoje você precisa me ouvir, é tudo que te peço

Sei que isso tudo cansa e você nem sabe mais de onde vem o cansaço

E você olha pro espelho e pergunta: “eu mereço?”

Você se perdeu no meio da bagunça, sorriu... e te arrastaram pelo braço


E todos te pedem, te perguntam, te confundem e te prometem

A mesma velha história de que podem te dar tudo, mas nunca agora

E você tem raiva, desiste, chora, mas não odeia... não merecem

A própria vida é medida provisória, se aqui dentro cansa, tenta lá fora


Não vou te prometer que tudo vai dar certo no fim

Espero que sim, mas não vou mentir, nem te dar falsas certezas... perdoe

Sei que cobram muito de você, e também cobram de mim

Mas não vamos pagar a estupidez deles com nossa tristeza... não hoje


Eu prometo esquecer o guarda-chuva, se você prometer rir de “cara feia”

Eu levo cola, tesoura e giz de cera; você desenha céu sem nuvem, mar e baleia

Prometo abraçar uma pessoa estranha, se você prometer acordar depois do meio-dia

Às vezes, quando se perde é que se ganha, se perde sanidade e se ganha poesia


Eu queria consertar todas as coisas, tanto quanto você

Mas se não dá pra mudar tudo, é melhor fazer pouco do que nada

Se tudo parece não ter sentido, não sofra tentando entender

E saiba que nunca terá sido em vão, aonde quer que leve a estrada