quinta-feira, 22 de maio de 2014

BILE AMARELA (Xanthé Cholé)

Me aproximo do espelho e olho no fundo dos meus olhos, através da pupila
Enxergo um touro negro com sede de revanche adubada por ódio, humilhação contida
Preso a um barbante amarrado a um graveto... o que o prende realmente?
Talvez um chicote distante, brandido há muito tempo, agora ausente

O touro inerte é açoitado por palavras, risos de escárnio e repugnância
A força dele cresce alimentada por mágoas e restos de uma dor em silêncio
Sinto o galopar, o som apressado de suas patas, do meu coração rumo à garganta
Enfim, o desastre anunciado liberta a fera e apaga a consciência num só momento

Tomo em mãos seu chifre e com prazer rasgo ventres, vísceras e gargantas
Pelo caminho, trituro, engulo, vomito e engasgo, entre clamores, súplicas e barganhas
É tarde para pedidos, é tarde para os perdidos... não se trata de justiça, apenas destruição
Mais um golpe para os feridos, sem clemência para os rendidos, mais sangue para o chão

Sinto a energia do sonho partido, do átomo partido, brotando da fissura e da fissão
Hoje sou o anjo mais nocivo, mais radioativo e não há fuga... ou solução
Hoje sou Shiva, Ares, Urano ou urânio em reação
Contamino a água e deformo crânios até a próxima geração;

A lógica não poderia ser mais óbvia, a energia é proporcional à repressão
Não há mais saída de emergência ou válvula de escape, só resta explosão

Como o canibalismo da alcatéia pinta a neve de vermelho,
ou como a rainha da colméia pede a morte do parceiro
Como um exército de berserkers espalha caos e pesadelo

Trago em uma mão o fim da esperança e na outra o início do desespero

terça-feira, 13 de maio de 2014

FLEUMA (Plégma)

Tanto fez como tanto faz, de trás para frente ou de frente para trás
Todo círculo começa no ponto em que acaba, e todos eles são iguais
Nenhuma surpresa é inesperada, se a espera já dura demais
O valor só existe na importância dada, e nada disso importa mais

Generais generalizam seus soldados genéricos
Soldados soldam solados de coturnos seriados
A norma normatiza a doença e o remédio
O ciclo repassa o passado no futuro e o futuro no passado

O meio, o morno, o médio
O mesmo contorno do tédio
Seu sonho único já sonhado por tantos
Causa muito embaraço e pouco espanto

Me deixa amortecer,
Deixa o amor tecer e depois enroscar um fio solto numa aresta do dia a dia
Deixa anoitecer,
Deixa a noite ser a agulha que se presta à anestesia
Prometo ficar abaixado na trincheira, prometo continuar fechado no casulo
Prometo dormir a vida inteira, se me deixar voltar para o útero

Mas se o aviso diz: cubra
Se descubra e não desvie os olhos por quanto tempo conseguir
E se o aviso te dispensa
Você pensa que devia ter pensado que podiam te substituir

Incontáveis engrenagens idênticas põem para funcionar a máquina da rotina
Intermináveis passagens concêntricas de um mesmo dia que nunca termina
O velho carimbo desbotado preenche com o mesmo desenho tantas folhas em branco
Enquanto rosas de arame farpado cobrem muros, desejos, escolhas e campos

Nada se cria, nada se perde, tudo se repete
Nenhuma surpresa é inesperada, se a espera já dura demais
Da poeira à poesia, o fim da estrofe se reflete:

O valor só existe na importância dada, e nada disso importa mais

terça-feira, 6 de maio de 2014

SANGUE (Haima)

Verão, outono, inverno, primavera... são tantas estações em que não passa nenhum trem
A locomotiva apita, compassa, com pressa... acerta o compasso do coração de alguém
Que chora, que grita, que sorri e que espera...uma vaga no vagão de si mesmo
Mas quando a roda perdida enfim se recupera, entra nos eixos e volta pros trilhos
O maquinista muda de estação... pra uma freqüência secreta que não se ouve com os ouvidos

Queima o carvão... como brasa branda que se aviva pela brisa
Aquece o coração... como o andar de quem anda passeando pela vida
Acende a chama e me chama pra sentar perto da fogueira
Com voz mansa de quem ama ver o fogo queimar a noite inteira

Mas se for para queimar pela metade, queima a meia-noite, queima o meio-dia...
queima devagar esta noite, para eu aproveitar bem a estadia;


E depois que fogos amarelo-avermelhados transformarem galhos marrom-enluarados em cinzas;
Pintarei ruas e telhados como pintor despreocupado, sem ter tido sentido e sem tintas.
Com talhos e retalhos, com calos que não calam a inspiração verdadeira
Entalho o trabalho que me impele, em pele, em pano e em madeira.
Como artesão desnaturado, sem dinheiro e sem salário, pelo prazer da brincadeira.

Admito ter perdido a bússola, o sono, a inocência e o juízo
Mas perdi por distraído e voltaram para o dono nos achados e perdidos
Tenho me encontrado mais perdido do que achado
Mas acho que agora estou quase me encontrando

Acho que meu lugar é ao lado... de quem esteve me procurando.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

BILE NEGRA (Mélaina Cholé)

Tenho acordado assustado, como quem sente que está atrasado para algo da maior importância, mas não lembra o quê.
Tenho procurado desculpas e argumentos, para as minhas faltas e para as dos outros, feito vista grossa aos pequenos pecados que machucam...
Tenho recorrido a vícios antigos, vestidos com roupas novas e bem passadas, procurado uma forma elegante de destruição.
Tenho invadido templos vazios em busca de ídolos que já se foram.
Tenho jogado conversa fora porque não vale a pena guardar...
Tenho coberto e lacrado espelhos, que insistem em me mostrar o cinismo que repudio... para que possa continuar, cinicamente, a repudiá-lo.
Tenho visto meus versos e idéias como plágios, expressos (de maneira melhor!) por tantos outros que vieram antes... tenho me entediado pela espera do novo e só o encontro quando já envelheceu.
Tenho andado me esgueirando por vielas escuras como quem se assume indigno por essência, baixado a cabeça para que nenhum olhar cruze com o meu e me descubra... e me revele ao mundo como o embuste que venho guardando em segredo de mim mesmo.
Pois há muito que venho escrevendo obras, dignas de um gênio, em línguas que não existem; pintado telas (não menos geniais!) com água e óleo incolor; escrito poesias que são metralhadoras de catarse, mas que nunca recordo de cor.
Tenho perdido o sono por conta de uma culpa que não conheço.
Tenho me assustado com estalos dos assoalhos de madeira, como quem faz o errado, ciente de que o está fazendo.
Tenho odiado o que está por perto e amado o que está longe... e depois, tenho chorado de saudades e sangrado teatralmente quando aquele que, outrora a meu lado, se afasta.
Tenho feito falsas e interesseiras penitências em público, apenas para poder me culpar ainda mais...
Tenho gasto meus últimos anos a lamentar pelo tempo perdido... me queixado da miopia do mundo enquanto tropeço em minha própria bagunça.
Tenho ensaiado e atuado, apaixonadamente, para uma platéia bocejante que perde a hora do aplauso.
Tenho andado pelas ruas do lugar em que nasci como um forasteiro, visto o antigo com estranheza e receio.
Tenho aguardado a hora de ser pego em flagrante, cometendo (sem saber) o maior dos delitos (que ainda não imagino qual).
Tenho pago diariamente parcelas de uma dívida que só faz crescer e que me cobra mais do que sou.
Tenho olhado para as estrelas com ares de saudades e iludido os ignorantes com pretensão messiânica.


Tenho procurado o fracasso com um misto de pesar e alegria, como o viciado se destrói na repetição.