domingo, 20 de abril de 2008

A Taberna

Aquela taberna não tinha nada de especial, os que ali estavam bebiam para se aquecer e, provavelmente, haviam sido atraídos pelo baixo preço. A maioria estudantes e trabalhadores ordinários. Uma música ruim parecia esforçar-se para se destacar em meio ao chiado do rádio. Devido ao clima rigoroso, os únicos que ocupavam as mesas que havia do lado de fora eram Ivan e Dimitri. A garrafa de vodka pela metade, para espantar o frio e facilitar a conversa:

- ... Creio que talvez a razão seja apenas desfrutar de tudo que estiver ao nosso alcance, o que justificaria a busca pelo dinheiro e todas as tentativas de satisfazer nossos desejos. Digo, todos aqueles que possam ser satisfeitos sem atropelar os indivíduos que nos cercam.

- Então, é realmente isso que você pensa? Livre de qualquer hipocrisia?

- Por que me pergunta isso, Ivan? Por que eu estaria sendo hipócrita?

- Você realmente acha que se pode satisfazer algum desejo, algum que valha a pena ser citado, sem atropelar a vontade de alguém?

Dimitri traga seu cigarro, como se talvez a resposta estivesse na fumaça e, em seguida, prossegue:

- Por um tempo, pensei da seguinte maneira, talvez eu ainda pense assim, os dois únicos modos de realização que podem haver na vida estão em fazer tudo aquilo que se quer, viver em função de si e, digo-lhe, sem qualquer sombra de ética. Aquele que é forte, simplesmente por sê-lo, tem direito de passar por cima de tudo que lhe impeça de saciar suas vontades. Ou, o oposto, viver na servidão. Esquecer-se de si, trabalhar pelo outro até esquecer de seus próprios desejos. Muitas vezes, me senti tentado a abandonar tudo que tenho e me dedicar a limpar feridas de doentes e pregar a Palavra, ainda que não cresse nela, pelas províncias mais pobres de nosso país. Depois de um tempo, creio que acabaria acreditando, ao evangelizar os outros, acabaria evangelizando a mim também. No entanto, há egoísmo nisso, você percebe, Ivan? Há uma arrogância ainda mais hipócrita na segunda do que na primeira...

- Sim, claro que percebo. Esquecer de si próprio é a atitude mais covarde que se pode ter, é como viver dopado... no entanto, ainda mais covarde, pois busca o reconhecimento dos outros pela nobreza de seu ato.

- Talvez, você não acredite, Ivan, mas, no meu caso, creio que essa opção não é tão hipócrita assim. Perdi as contas de quantas vezes senti vontade de anular todos os meus desejos para servir à humanidade, do fundo de minha alma quis simplesmente servir aos outros. Mas como disse aquele escritor, como mesmo é o nome dele? Enfim, como ele disse, é muito mais fácil amar a Humanidade do que um único homem. A coisa parece tão sedutoramente bela e poética. Mas o que eu encontraria? Apenas desdentados mal cheirosos, cabelos desgrenhados e espíritos pobres. E por Deus, nunca suportaria a ingratidão! Bastaria que um deles se mostrasse indiferente após eu ter passado uma noite ao lado de sua cama, velando por seu sono, para que todo meu ideal desmoronasse. Essa vida não passa de um grande teatro mal interpretado, não é mesmo? E o que é mais deprimente é que bastaria que estes desgraçados simplesmente soubessem desempenhar seus papéis para que eu tivesse minha felicidade.

- Você não entende, Dimitri. Como acabou de confessar, era sua felicidade que buscaria na servidão. E como ainda tem coragem de dizer que essa alternativa não seria tão hipócrita assim?! Mas tudo bem, suponhamos que você realmente quisesse apenas servir à felicidade do outro. O que pode ser mais covarde do que isso? O Homem que nega a si mesmo como homem, esse é o que mais merece ser desprezado. Nega sua própria natureza, foge de si escondendo-se atrás da postura do divino. Isso porque, no fundo, sempre há a tentativa de fuga. Todavia, se ele realmente fosse capaz de amar esse indivíduo vulgar, esse ingrato e pobre de espírito que não seria digno sequer da presença dele, mas que, para ele, pareceria a própria razão de sua existência. Se ele fosse capaz disso, então daria significado a todo o resto que existe.

- Como assim, daria significado a todo o resto que existe?

- Você me conhece, Dimitri, sabe que sou desiludido e diria até deprimido. Para mim, estamos simplesmente perdidos nesta vastidão do espaço, sem razão de ser e nunca teremos as respostas para as perguntas que mais nos angustiam. Nunca seremos capazes sequer de constatarmos nossa infeliz falta de propósito. Mas suponhamos que não fosse assim, vejo apenas duas maneiras de possuirmos algum sentido: a perfeição ou a justiça.

- E o sentido simplesmente pelo existir, você o desconsidera? Digo, considerando apenas a felicidade breve, o gozo do momento.

- Sou racional ou estúpido demais para me contentar com isso. Você sabe, o mal dos homens, tentar dar um sentido a tudo. Negamo-nos a nos ver com a mesma importância de todos os outros seres vivos. Era sobre essa infeliz constatação que dizia que creio que seremos incapazes de chegar um dia, mas que, creio eu, deva ser a verdade. Somos frutos do acaso e por ele seremos engolidos. Como todo o resto que existe. Mas eu falava sobre a outra possibilidade, a de haver algum sentido.

- Sim, prossiga.

- Se houvesse uma perfeição, ainda que finita. Se houvesse um indivíduo perfeito, e digo isso tomando como base meus critérios individuais e subjetivos, então, todo o resto teria significado, porque serviria de contexto e de certa forma teria contribuído para o surgimento deste ser. Você me entende? Só que, no caso, tudo faria sentido apenas para mim e para aqueles que dividem comigo os mesmos critérios de perfeito. Esse ser não precisaria ter nenhuma finalidade. Poderia ser um Cristo que morre por um deus que não existe. Ele, por si só, seria a justificativa. A perfeição, mesmo que finita, ao meu ver, daria sentido a todo o resto.

- Confesso que não aliviaria as minhas angústias. No entanto, consigo reconhecer o sentido da proposição. E a outra, Ivan, qual seria a outra possibilidade? Quem sabe pudesse trazer alívio a mim também...

- A outra, como disse, seria a justiça. Creio que boa parte de nossas angústias se devam a sensação de estarmos perdidos aqui, a mercê de um mundo e uma vida indiferentes a nós. Fazendo o bem ou o mal, que diferença faz... que diferença faz se teremos escrúpulos ou não. Tenho uma inclinação a fazer aquilo que acho correto, procuro policiar as minhas atitudes, porque desenvolvi um certo senso de ética. Mas e se não fosse assim? Faria alguma diferença? Quantos torturados morreram clamando por justiça, e quantos algozes morreram na paz da velhice? Quantos tentaram viver dentro de seus princípios e morreram enforcados num quarto de porão, e quantos sem escrúpulos desfrutam da fartura em seus palácios? Você percebe, Dimitri, talvez tudo tenha um propósito maior que um dia seja revelado, mas eu duvido disso. Então, você vê onde estamos? Não há nada em que possamos confiar. Mas, se houvesse a justiça, então, de certa forma, tudo faria sentido.

- Mas como, como poderia haver tal justiça?

- Você me conhece, sabe que sou um ateu convicto. Não me orgulho disso, mesmo porque, não haveria razão para me orgulhar, tampouco, para ter vergonha. De qualquer forma, o único modo de haver justiça e, por conseguinte, haver sentido, seria o juízo final. Quando todos tivessem que se prostrar diante de uma fonte inquestionável de justiça; uma fonte incorruptível.

- É irônico, não é mesmo, Ivan? Nossa geração de ateus ainda só consegue apontar soluções religiosas. Mesmo que inviáveis e fantasiosas.

- Não conseguimos assimilar a idéia de nossa efemeridade e falta de propósito. Mas sabemos qual é a provável verdade, não é mesmo?

- E qual seria?

- Somos uma casca que não envolve nada. Mas, talvez, haja muito mais conforto no nada do que em qualquer outra essência.

Mais um gole de vodka, um suspiro imperceptível e uma tragada.


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