terça-feira, 1 de abril de 2008

O Lixeiro

Minha profissão não tem reconhecimento. Você não pode ter muitas expectativas de subir de cargo. A maioria dos meus colegas tenta esconder que trabalha nisso. Por que você acha que vê lixeiros trabalhando de boné durante a noite? Numa folha de cadastro, para uma loja ou coisa que o valha, tentam esconder o jogo: “Coletor municipal” ou “trabalhador público”.

Imbecis!

Bando de babacas frustrados...

Eu sei o valor do meu trabalho. Fazemos aquilo que ninguém quer fazer. Paramos de trabalhar por uma semana e, se você mora numa metrópole, terá que escalar montes de sua própria porcaria para sair de casa.

O mundo gera 30 bilhões de toneladas de lixo por ano.

O país em que vivo gera 140 mil toneladas de lixo por dia.

Dizem que estamos na Era Digital. Eu digo que estamos na Era do Lixo. Na Era em que sobram coisas inúteis. E somos nós que estamos lá pra dar conta do recado. Pra que você não se afogue em sua própria imundície.

Eu realmente gosto do que faço. Não fico preso a uma merda de escritório, achando que o mundo cabe na tela de um computador, com a bunda amortecida, sentada numa cadeira de couro.

Alguém tem que fazer algo com as vísceras dos animais que oferecem o couro para estofar o banco dos seus automóveis.

Isso é o que mais fede. Pode acreditar. Chamam de necrochorume. É um líquido que escorre da carniça no período de putrefação. Aquele cheiro desgraçado é por causa da cadaverina, uma diamina (C5H14N2) que também é parcialmente responsável pelo cheiro do sêmen e das infecções vaginais. Mesmo num aterro, no meio de todo aquele fedor, você consegue distinguir o cheiro da cadaverina.

Você deve conhecer o chorume normal. É aquele líquido que escorre do caminhão de lixo, que faz você prender a respiração quando passamos por você.

O chorume é um efluente complexo que contém compostos orgânicos (ácidos orgânicos, substâncias húmicas, solventes, alcoóis, fenóis, compostos aromáticos, pesticidas, entre outros), metais potencialmente tóxicos (Cd, Zn, Cu, Pb) e muitos outros íons2: NH4+, Ca2+, Mg2+, K+, Na+, Cl-, S2-, HCO3-, etc. (BERTAZZOLI, 2005).

Aposto que você deve estar assustado por eu saber disso, sendo um lixeiro. Não se sinta culpado, o preconceito é muito mais enraizado do que admitimos.

Perto da cadaverina, chorume tem fragrância de "Le mâle” ou “Channel n 5. É interessante a relação das pessoas com o cheiro. Se você fede, você é discriminado.

Um frasco da linha “Imperial Majesty”, do perfume "Nº 1 for Women" custa 200 mil dólares. Eu teria que trabalhar uns 10 anos inalando fedor pra comprar um frasco dessa porra. Não estou julgando ninguém. Cada um faz o que quer e pode.

Uma vez um velho me pediu pra juntar um pouco de chorume pra ele.

Tinha ouvido que aquilo era cheio de vitaminas. Que fazia bem pros ossos e pro sangue.

Eu sabia que não tinha fundamento. Mas se ele quer tomar chorume, ele tem esse direito.

Entreguei um frasco pra ele, cheio com o líquido. Não era difícil pra eu conseguir.

Ele bebeu um gole na minha frente. Todo o tipo de loucura acontece com muito mais freqüência que você imagina.

Você pode conhecer as pessoas através de seus lixos. Pode saber quase tudo sobre elas. A classe social, os gostos, a opção sexual, suas frustrações, seus desejos...

Você pode saber se elas tem hemorróidas ou insônia.

Se jantam lagosta ou macarrão instantâneo.

Se elas se entopem de benzodiazepínicos ou heroína.

Se tomam chá verde ou se aplicam morfina.

Freud estudava o inconsciente das pessoas. Eu estudo seus lixos. Dá quase na mesma.

Prendi um gancho metálico na parte interna do caminhão. Quando quero conhecer mais uma pessoa de uma determinada casa, prendo o lixo dela sempre ali. No final do expediente, levo o lixo embora e o estudo com cuidado.

Me dê um mês com o seu lixo e te conheço melhor do que sua mãe.

Com o tempo, você pega a manha. Só de pegar o saco você já sabe se é lixo do banheiro, da cozinha, do escritório...

Geralmente os do escritório são os que guardam mais informações, mas isso não é regra.

Você pode se surpreender muito examinando lixos.

Uma senhora viúva, de 70 anos, com uma vasta coleção de vibradores. Você nem sonharia com isso vendo ela na missa.

Um padre que coleciona armas de fogo. O sujeito tem um verdadeiro arsenal.

Um lixeiro de 30 anos, viciado em literatura russa. Você não diria isso se visse ele pendurado no caminhão. Esqueci, você nunca olha pra ele.

Você pode encontrar carteiras com muita grana dentro de um saco de lixo. O cara está ansioso, tem uma reunião importante. Resolve fumar um cigarro. Apanha uma caixa de fósforo. O celular toca, ele atende e pega a carteira pra digitar o número do CPF. Acende o cigarro, desliga o telefone e joga fora a carteira em vez da caixa de fósforos. Só vai se dar conta disso no meio da reunião. E se o caminhão de lixo já passou, então, já era.

Um conselho, sempre use luvas pra examinar o lixo do banheiro.

O último caso que estudei, foi o lixo de uma verdadeira mansão.

Um advogado divorciado. Mesmo que o cara tenha grana pra contratar empregada, você sempre encontra embalagem de comida de microondas no lixo de divorciados. Em se tratando desses sujeitos metidos a importantes e ocupados, quase não tem erro. Eles acham que comer e cagar é desperdiçar tempo.

A próxima revolução da indústria vai ser criar um produto que faça você cagar rápido, na hora em que você quiser, sem perder tempo se limpando e sem os efeitos colaterais dos laxantes.

Crie um produto desses e o Viagra vai parecer gengibirra comparada à Coca-Cola.

Estudei um mês o lixo desse sujeito.

Viciado em anfetaminas. Nada de incomum. Vasta coleção pornográfica. Natural. Comprador de instrumentos sado-masoquistas. Se você conhece o lixo das pessoas, isso não chega a ser estranho.

Um dia encontrei fotos dele com uma cabra. Natural, se for no rancho onde passa o fim de semana. Excêntrico, se for num quarto de motel. Zoofilia. É assim que chamam isso.

Os psicanalistas dizem que não nascemos com um objeto sexual pré-determinado. Homens não nascem necessariamente gostando de mulheres e vice-versa. O objeto sexual pode ser qualquer coisa; não apenas seres vivos. Alguém pode escolher uma máquina de lavar como o seu objeto sexual, por exemplo. É isso que eles dizem.

Não estou nem aí se o cara quer se divertir com uma cabra. Estou examinando o lixo dele há apenas uma semana e já o conheço mais do que sua própria mãe.

Uma semana depois volto a encontrar fotos dele num motel. Mas ele já não está mais com cabras. Dessa vez, são fotos com meninos e meninas. Não sou bom em presumir idade, mas diria que tinham entre 10 e 13 anos. Pedofilia. É assim que chamam isso.

Não importa se você lê Freud, Reich ou Lacan. Tive uma criação católica e algumas coisas pra mim sempre parecerão simplesmente safadeza. Alguns conceitos estão muito interiorizados para se desfazer deles um dia.

O cara é uma imundície. Um monte gigante de merda. E, oportunamente, eu sou um lixeiro.

Pensei em várias formas de fazer a coisa. Me dê um disquete e o material certo e posso fazer seu computador explodir. É verdade. Você pode até se negar a acreditar, se pensa que isso o faz se sentir mais seguro.

Ponha o disquete num envelope, junto com um bilhete escrito: “Conheço o seu segredo”. Basta um pouco de sorte e o problema todo já está resolvido.

Não foi assim que fiz.

Juro que não.

Mas, de qualquer forma, a essas horas, aquele porco deve estar em algum lugar do aterro, produzindo necrochorume. Exalando cadaverina. O fedor lembra a morte. Talvez seja por isso que as pessoas discriminam quem fede. Talvez seja meio inconsciente.

Sou lixeiro. Levo o lixo da cidade para algum lugar distante, onde as pessoas não possam sentir o cheiro de suas próprias imundícies.

Sabe de uma coisa, no meu país não ganho mal pra fazer isso. E gosto do meu trabalho.

Ao ar livre. Sim, respirando podridão, mas uma hora você se acostuma.

Não preciso gastar dinheiro com academias, correndo em esteiras. Corro alguns quilômetros por dia.

Suba no caminhão e exercite o quadríceps e um pouco da panturrilha. Apóie-se na barra para não cair, e exercite um pouco de tríceps, ombro e grupo dorsal.

Para se ter um trabalho de verdade, é preciso que você chegue em casa com o corpo cansado. Durma um sono longo e tranqüilo. Por isso a maioria das pessoas sofre de insônia hoje em dia.

Sou lixeiro. É isso que faço. Carrego para longe suas imundícies, para que você possa esquecer delas.

Você não me conhece. Sou um anônimo pra você. Você torce o nariz quando passo.

Mas me dê um mês com seu lixo, e te conheço melhor do que sua mãe.


http://apologiaaocaos.hpg.ig.com.br/

8 comentários:

xDDDre disse...

Haha... divertidinho.
É bom encontrar um texto assim na internet, de vez em quando.

Bem Chuck, btw...

Alan Ongaro disse...

Excelente! um tanto quanto surreal, mas mesmo assim excelente.

Estilo Palahniuckiano detectado! :)

Raoni V. Storti disse...

Me lembra Palahniuck mesmo
soh que mais suave
gostei muito!

kaique pimentel disse...

genial!lembra um pouco chuck palahniuk e chales bukowski!!

PERFEITO!

Unknown disse...

Lembra bastante Palahniuk. Porém não perde seus méritos e é muito bom, parabéns!

Rift_2549 disse...

Legal.

Achei um pouco forçado. Não me soou natural. Parece mais uma ameaça com tom de revolta. Ficou meio perdido a ponto de buscar várias críticas, mas não finalizou a crítica em si de um modo convincente. Buscarei ler outros textos.

A.E.S.N.U.G. disse...

Muito bom, é de textos assim que a literatura brasileira precisa!!

Diego disse...

Gostei muito...
Como muitos já falaram bem parecido com o estilo do Palahniuk, tanto que achei o link para este post em um tópico na comunidade do mesmo no orkut. Enfim, mas isso não é demérito. É um elogio...
Vou ler tudo que tiver no blog, pois a primeira impressão foi ótima...