Eu estava andando pela rua num
dia de chuva e a coisa mais estranha aconteceu comigo, de repente, eu não sabia
mais de onde estava vindo e nem para onde ia. Juro, foi realmente assim. E quando
o desespero já começava a bater, vi um sujeito, que eu não conhecia, que andava,
despreocupadamente, se molhando com um capuz na cabeça e com um capacete de
astronauta na mão. Sem saber direito por que, cheguei ao seu lado e dividi meu
guarda-chuva com ele. Ele se virou para mim e sorriu. E me senti bem. E sabia
que ele também se sentia bem naquele momento. Andamos sem precisar falar um com
o outro, e não houve desconforto nenhum. Ele chutou uma lata que estava caída
no chão. Quando cheguei perto, chutei também. Percebi que estávamos conectados
de um jeito difícil de explicar. Que, ao chutar a mesma lata, tínhamos feito um
voto profundo.
- Pra onde
você está indo? – me perguntou, de um modo que me fez pensar que ele já
soubesse a resposta.
- Você vai
achar isso meio estranho, mas a verdade é que não sei responder. Tenho andado
meio confuso nesses últimos tempos – falei, enquanto olhava fascinado para
os incontáveis círculos que se desenhavam no chão com o cair dos pingos de
chuva.
- Nem
esquente, as pessoas mais legais são sempre um pouco confusas – ele sorriu com
o canto dos lábios, fechando ligeiramente um dos olhos.
- Pra onde
você está indo? Quem sabe eu posso te acompanhar com o guarda-chuva até lá? –
perguntei, talvez, querendo fazer um favor mais a mim do que a ele.
- Estou indo
reto... E pra frente...
- Ótimo –
respondi contente. – É justamente para onde eu pensava em ir.
Caminhamos mais um tempo lado a lado. Eu segurava
no cabo do guarda-chuva e ele um pouco mais acima, na parte de metal. Caminhamos
calados até que, numa esquina, ele disse:
- Eu fico
aqui.
Senti o ar me
faltar por um momento. Uma parte de mim queria acreditar que caminharíamos
reto... e pra frente... para sempre. Mas outra parte sabia que há as esquinas e
que o grande truque está em deixar o egoísmo de lado e saber quando as pessoas
precisam dobrar em alguma delas (por mais que isso te deixe devastado).
- Olha só, eu
não gosto muito desse lance de despedidas muito longas – disse ele, soltando o
guarda-chuva.
- É, parece
mesmo que a gente tem algumas coisas em comum – sorri.
- A história
toda é meio complicada e comprida e não vai dar pra explicar agora, mas, no bolso da tua calça,
tem um pedaço de papel com um endereço do lugar pra onde você precisa ir. Basta
seguir reto... e pra frente...
Eu fiquei
surpreso com aquela conversa, mas, às vezes, as coisas são assim mesmo,
estranhas e confusas. E pode ser pior tentar entender.
- OK –
respondi, aceitando que não havia outra resposta.
Ele se virou e
foi andando em outra direção.
- Boa viagem! –
gritei.
- Quem disse
que vou viajar?
Apontei para o
capacete de astronauta em sua mão. Ele sorriu e piscou para mim. Vi ele
entrando num táxi e indo embora. Então, segui reto... e pra frente... e quando
dei por mim, estava diante do endereço que ele havia me passado. Era a minha
casa e (acredite!) era a casa dele também. O tal sujeito era meu irmão. Nossa mãe
me explicou que ele tinha ido atrás de mim, porque eu havia saído sem destino
quando soube que ele iria numa viagem pra um lugar muito... muito distante. Demorou
um pouco para que as coisas que ela me disse fizessem sentido. Depois,
especialistas falaram que eu havia tido o que chamam de amnésia dissociativa,
uma perda repentina de memória e identidade diante de um episódio muito
estressante.
Esse meu irmão
era um tipo de astronauta bastante especial. Ele estava de viagem marcada para
um planeta distante, com uma missão super importante. Parece que os habitantes
deste tal planeta estavam muito preocupados com assuntos complexos, que
demandavam muito tempo e responsabilidade. Logo, esses seres estavam correndo
sérios riscos de se tornarem a espécie mais chata da galáxia. Por isso,
recrutaram meu irmão, ninguém era mais indicado do que ele para evitar esta
catástrofe. Ele tinha algumas armas secretas para esta missão, dentre as quais
a receita de um molho de cachorro-quente picante e uma dança frenética dos anos
80 (certamente ele se sairia bem).
Eu chorei e
sofri muito quando minha mãe me fez lembrar de tudo isso. Mas nossa família é
grande e meus outros irmãos e irmãs precisam de mim, assim como eu preciso deles.
A única coisa que continuava doendo era a saudade, só que acontece que um dia
desses eu tive uma surpresa e tanto! Fui levar meu irmão mais novo a uma
exposição de pequenos animais excêntricos (para ver, principalmente, um hamster
de gravata borboletas que andava sobre duas patas e ainda levava em outra uma
pequena bandeja com uma garrafa e duas taças em miniatura) quando começou a
chover. Apenas eu havia levado guarda-chuva e, durante a volta, precisamos dividi-lo.
Foi então que
ouvimos a voz do meu irmão astronauta. Quando nos demos por vencidos e
decidimos acreditar naquilo que nossos ouvidos escutavam, descobrimos que ele havia
instalado uma espécie de comunicador em meu guarda-chuva que só funcionava se
duas pessoas o estivessem dividindo (isso era mesmo a cara dele!). Contou-nos
que sua missão estava correndo melhor do que o esperado, a única coisa
preocupante era o risco de obesidade para os adeptos do cachorro-quente picante
que não gostavam de dançar (de qualquer maneira, esse imprevisto vinha sendo
superado com a introdução de alternativas, como a prática do bete-ombro).
Sempre que eu e meus irmãos queremos notícias dele, saímos pela rua em dois, três, quatro,
cinco... sob o mesmo guarda-chuva (inclusive nos dias de sol). Obviamente atraímos
todos os tipos de olhares das pessoas que passam por nós. Claro que poderíamos
falar com ele de dentro de nossa casa, protegidos pelas paredes, já que o
dispositivo funcionaria do mesmo jeito. Acontece que não teria a mesma graça, e
sabemos que nosso irmão astronauta iria gostar muito mais de nos ver andando
pela rua como um bando de lunáticos apinhados sob o mesmo guarda-chuva (o que,
convenhamos, é realmente muito mais divertido).
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