sexta-feira, 4 de julho de 2008

A longo prazo, não há escolhas

Tempo passando. Tempo passando.

Não dá pra reverter, você sabe disso. O fluxo é contínuo, você sabe disso.

Você preenche com memórias o intervalo entre o dia que você foi atirado aqui e o dia em que vão te atirar em algum outro lugar.

Você é orgânico, você sabe disso. Um dia você vai apodrecer, você tenta esquecer disso. Trave uma luta contra a natureza e espere a derrota. Ela sempre vence. Mais cedo ou mais tarde, ela vai te engolir. Tudo vai ficar muito mais fácil se você aceitar.

J. F. K., essas são as iniciais de um sujeito que conheci. Não, ele nunca foi presidente dos EUA Ele nunca desfilou em conversíveis, sorrindo e acenando pra multidões.

Foi um menino esquelético. Tímido. Boas notas. Péssimo em esportes. Alvo fácil no colégio. Interesse especial em entomologia (estudo dos insetos). Achava-se parecido com os insetos, especialmente com o louva-a-deus.

Os insetos apresentam exoesqueleto (esqueleto externo de quitina).

O que os teus colegas te dizem no colégio, você não esquece nunca.

J. F. K. odiava quase todo mundo. Riam dele, e ele não conseguia perdoar isso. Sentiam pena dele, e ele não conseguia perdoar isso.

Todos os amigos acabam se tornando chatos ou inconvenientes a longo prazo, você sabe disso.

A vida de J. F. K. não tinha sentido algum para ele até os seus 20 anos. Viver era como ser colocado num carrossel, sem nunca ter pedido por isso, e ser obrigado a esperar que ele pare pra poder saltar fora.

Suicídio estava fora de cogitação; já havia sido um investimento relativamente alto para sua família para não dar resultado algum.

Alguns pais podem não dizer, mas sempre esperam algo de você, e você sabe disso.

Esperar que o dia-a-dia o consuma aos poucos. Como uma goteira de ácido sulfúrico sobre uma barra de aço. Esse era o plano de J. F. K. Sempre sorrindo quando fosse preciso. O Oscar era dele. Desejando feliz Natal e feliz Páscoa. O Globo de Ouro. Enviando cartões postais e indo ao cinema com a namorada. Palma de Ouro em Cannes.

Simplesmente seguia o protocolo. Viver era como redigir um ofício. Segue-se algumas regras e não há erro.

Não há erro. A burocracia é uma velha desdentada tentando te comer vivo.

Até que, quando tinha seus 20 anos, algo mudou.

Às vezes, a rotina é tão confortável que gera dependência. Dopado pelo cotidiano. Melhor que morfina.

Algo preencheu um espaço vago na vida de J. F. K. Os dias não eram mais tão vazios. Ele tinha algo pelo que esperar no dia seguinte. Uma série de TV. “What about me?”. Talvez uma merda para você. Talvez você o ache estúpido. Mas, a longo prazo, tudo é indiferente.

Nenhuma existência é fundamental.

5 anos se passaram desde que descobriu seu novo mundo; e J. F. K. nunca perdeu um episódio. Agora ele trabalhava numa fábrica de disjuntores. Setor administrativo. Um disjuntor parece algo tão idiota que você nem se dá conta de que precisa alguém pra fabricar essa porra. Mas era um negócio lucrativo.

J. F. K. parecia tão idiota que talvez seus colegas de colégio houvessem esquecido que ele tinha sentimentos. Que continuaria existindo depois do colegial.

Sim, ele tinha sentimentos. Sim, ele ainda existia.

O rancor é um dos sentimentos mais duradouros. Isso é uma verdade. Suas vísceras estavam impregnadas de um lixo radioativo que duraria centenas de milhares de anos para se extinguir. Talvez, depois que morresse, seu ódio permanecesse vivo sob a forma de um espectro.

Mas agora tudo havia melhorado. Sua família o considerava uma pessoa normal e ele tinha sua série de TV. “What about me?”. Uma série clichê. Melosa. Sobre um grupo de jovens de uma cidade do interior norte-americano. A história se passava num colégio. Talvez J. F. K. visse no protagonista rebelde, de jaqueta de couro e motocicleta, aquilo que queria ter sido.

Parecia um cara legal. Rodeado de garotas. Bom em esportes, apesar de achá-los estúpidos. Não batia nos garotos esqueléticos.

Os insetos são constituídos por um esqueleto externo, chamado exoesqueleto; você já sabe disso.

J. F. K. chegava em casa às 19 horas. A série começava às 20:30.

Às vezes, a rotina é melhor do que morfina, você já sabe disso. Ir ao trabalho sempre pela mesma rua. Sair de casa e retornar sempre nos mesmos horários. Almoçar sempre no mesmo lugar. Esse tipo de coisa te traz uma segurança que acaba fazendo você esquecer sua falta de propósito.

A longo prazo, tudo é indiferente, você sabe disso.

A longo prazo, não há como ser otimista; no fundo, você sabe disso.

Havia dois meses que o chefe de J. F. K. morava no andar logo acima do seu. Uma cobertura espaçosa.

Quando se mudou deu uma festa. J. F. K. foi obrigado a comparecer. Como dar uma desculpa quando se mora no andar debaixo?

Gravou o episódio da série. No meio da festa, quase não conseguia suportar a ansiedade. Aquele episódio era decisivo. Será que Gracie descobriria que Brian só estava com Jane porque achava que ela tinha leucemia?

Jane jogava sujo, mas acabaria sendo desmascarada. J. F. K. sabia disso.

Não foi daquela vez, mas a profecia se cumpriu. As armações de Jane foram descobertas, no último episódio da série.

A rotina é tão segura que acabamos esquecendo que um dia ela acabará. Como o sujeito que é encontrado enforcado no quarto após conseguir uma gorda aposentadoria.

Quanto tempo J. F. K. poderia suportar sem a sua série?

Ele não odiava seu chefe. Não tinha por que odiar. Sua vida estava numa outra dimensão. Seu dia começava às 20:30 e acabava às 21:20.

Mas e agora?

Seu chefe era um sujeito calvo e obeso de meia idade. Todo mês contratava uma prostituta de uma cidade vizinha para passar uma semana em sua companhia. Criava seu personagem. Dava a ela um nome falso. Uma profissão falsa. Inventava uma história sobre a conquista. E então, o principal, apresentava-a aos amigos. Seu troféu.

No escritório, J. F. K. era seu alvo. Fazia todo o tipo de piada de mau gosto sobre ele. Ridicularizava-o na frente de seus colegas. Esquecia que também havia sido um alvo no colégio, por sempre estar acima do peso.

Dê uma oportunidade às vitimas e elas se tornam algozes.

Toda a diferença entre o torturador e o torturado, o explorador e o explorado, está no fato de que o segundo não teve chance de ser o primeiro.

J. F. K. podia ouvir o som dos passos arrastados de seu chefe quando este se dirigia a sua cama. O quarto dele ficava logo acima do de J. F. K. Tinha noites que tinha a impressão de ouvir seus peidos. Isso sem falar nos rangidos da cama, quando ele contratava uma nova prostituta.

Realmente sentia pena daquelas garotas.

Imaginava-as embaixo daquela bola de sebo e pêlos.

Tudo isso era suportável porque às 20:30 começava “What about me?”

Mas e agora?

J. F. K. comprou uma espingarda calibre 12.

Precisava que as bolas de chumbo se dispersassem na hora do disparo.

Não queria errar o alvo.

À meia noite, ficou em pé sobre sua cama e bateu com o cano da espingarda no teto cinco vezes seguidas.

Não houve nada.

Mais cinco vezes. Nada outra vez.

Tornou a bater até que houve a confirmação. Uma voz conhecida berrou: “J. F. K., que porra você tá fazendo aí embaixo, seu filho da puta? Eu tô tentando dormir!”.

Não havia nenhuma prostituta com ele naquela semana. Isso era bom.

Ele estava deitado em sua cama. Isso era bom.

J. F. K. posicionou-se mo lugar certo e colou a espingarda sob seu queixo.

O último pensamento que passou por sua cabeça foi: “Será que algum pedaço do meu cérebro vai ser encontrado dentro do corpo dele?”.

A longo prazo, não há sobreviventes.


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Um comentário:

Anônimo disse...

Realmente lindo! Triste~ Mas tudo não passa de verdades. o.o'