domingo, 27 de julho de 2008

Hikikomori

Eu fico me perguntando quando realmente isso começou... Difícil precisar. Às vezes, chego a pensar que nasceu comigo. Algumas pessoas nascem com certas habilidades, outras com algumas dificuldades. Eu nasci cercado por um muro, invisível para os outros, mas não para mim. Mas será mesmo?...

Imagine-se cercado por um muro, com uma área de um 1 m2, muito mais alto que o maior arranha-céu já construído e que não pára de crescer. Sei que num primeiro momento deve parecer desesperadora a sensação de estar cercado; mas, hoje, me apavora a idéia de um dia o muro se acabar. Hoje, dependo dele.

Há 17 anos, 7 meses e 23 dias estou isolado em minha casa. Algumas raras saídas de meu quarto. Algumas raríssimas caminhadas pela madrugada, por lugares que sei que não encontrarei ninguém. Hoje me peguei perguntando algo que, curiosamente, nunca havia me ocorrido: Como tudo começou? Quando eu coloquei, ou, quando colocaram os primeiros tijolos do meu precioso muro?

Poderia ter sido o bullying. Um termo norte-americano para designar as agressões físicas e psicológicas (no meu caso, psicológicas) entre colegas de escola. Geralmente, as vítimas mais freqüentes são alunos gordos, ou muito magros, ou muito altos... No meu caso, nenhuma das características anteriores. Não sei ao certo por que meus colegas me escolheram. Talvez um garoto qualquer tentando se mostrar engraçado para as meninas... chamar a atenção da classe, escolha você ao acaso. Talvez o ridicularize em público de alguma forma. Você ainda está seguro de si, ainda possui uma auto-estima bem estabelecida e considera o episódio uma bobagem. Recorda-se do ocorrido algumas vezes antes de dormir e pensa que deveria ter revidado. As palavras que faltaram na hora agora sobram. As melhores respostas sempre chegam atrasadas. Passam-se alguns dias e você é ridicularizado de volta. Agora, por outra pessoa. Talvez o fato de já haverem te escolhido uma vez, te torne bem cotado para uma próxima escolha. Você procura alguma lógica, mas não encontra. E você perdoa a todos, por que, afinal, você é tão bom, tão superior a todos para guardar rancor ou para se vingar. Você acaba de unir um componente muito perigoso nessa mistura, sua arrogância.

“Puna no momento certo para não ser punido para sempre”. Isso é algo que se aprende; infelizmente, as melhores respostas sempre chegam tarde. Você é o alvo outra vez, e outra... e outra... e outra... Quando você se dá conta, até os professores já estão o ridicularizando. Você não se sente mais seguro; já não há mais sombra de autoconfiança ou auto-estima. Aonde quer que você vá, você se sente um soldado nu cercado por um pelotão inimigo. Você não considera mais o acaso como o fator determinante. Passa a achar que há realmente algo de errado com você. Paranóia. Para onde quer que você vá, qualquer risinho discreto, qualquer olhar passageiro, tudo está contra você. Você é o alvo. Você é a piada. Você é o intruso. E você percebe que não é imune a aplicabilidade dos chavões: “Uma mentira repetida muitas vezes se torna uma verdade”.

Você muda de colégio, mas depois de tanto tempo de tortura, será que você ainda é o mesmo? Você toma sua inferioridade como certa. Tenta, em vão, encontrar uma lógica. Torna-se vítima outra vez, não importa para quantos colégios se mude, esse é seu estigma. Não precisa muito tempo para que o menino sorridente no porta-retratos só deseje explodir, varrendo da Terra todas as pessoas más. No íntimo, a pergunta: sobraria alguém?

Filho único, passa a descontar seu ódio represado na única pessoa que julga ser inocente, sua mãe. Uma viúva que não possui muitas alegrias em sua vida, que julga seu filho aquilo que possui de mais precioso. E ele compreende e perdoa todos os seus algozes, cria álibis para eles; no entanto, pune a ela, com frases afiadas, perguntas capciosas. Que ironia, será que há algum prazer especial em punir inocentes? Seria um efeito em cadeia? Mas esse filho sente-se extremamente culpado por essa postura que adotou, e da qual não consegue se desvencilhar. Mais um conflito para seu vasto repertório.

Um amor materno que não consegue corresponder da maneira adequada. Uma vítima que não consegue encontrar razões para as torturas que sofre. Encontra álibis para seus torturadores. Pune a única pessoa que não o maltrata (talvez a puna justamente por isso, por mais esta contradição: “por que não são todos que o odeiam?”; talvez fosse mais fácil...). Culpa. Necessidade de corresponder às expectativas. Inferioridade ou superioridade?

No Japão, em vez de bullying, utiliza-se o termo ijime para denominar este fenômeno. O ijime é um dos principais causadores do suicídio infantil e do abandono escolar. É estranho pensar como crianças podem ser tão cruéis umas com as outras. A competição e o convívio em grupo podem despertar em nós todo o tipo de comportamento. Destrua para não ser destruído, ou, isole-se.

Você passa a agir de maneira estranha. Seus contatos com os outros vão ficando cada vez mais raros. Você teme a todos e a tudo. Não quer mais se aproximar de ninguém. Não quer mais conversar com ninguém. Qualquer voz o irrita. Sua própria o irrita mais que todas as outras. Inicia-se uma contagem regressiva das palavras que você passa a proferir durante o dia até, finalmente, chegar ao zero. O confortável zero. O confortável muro. A confortável tristeza. Você passa a desejar estar sedado por todos os dias restantes de sua vida. Um tipo de morfina permanente. Os melhores momentos de sua vida passam a ser aqueles em que está dormindo.

Mas você está seguro atrás dos limites de seu muro. Você mora em seu quarto. Há uma abertura na porta, que você criou para sua mãe passar o prato com comida e, vez ou outra, trocar algum bilhete com você. Ela nunca desiste. Você raramente responde os bilhetes dela, mas ela continua escrevendo, todos os dias, durante estes 17 anos, 7 meses e 23 dias ela não falha uma única vez sequer. Ela tem esperança que você saia e que tudo seja da maneira que ela sempre fantasiou. Ahh... e você se sente culpado de uma forma que jamais caberia em palavras! E você chora como um tolo enquanto escreve isso. E você, que já não crê em nada, reza para qualquer coisa que possa existir para nunca haver nascido, para ser apagado da memória dela. Seria mais fácil se todos o odiassem.

Hikikomori. A nomenclatura sempre o define de uma forma para o classificar, mas nunca de uma forma para realmente o conhecer. É assim que denominam isso que me tornei. Já não me lembro há quantos anos não pronuncio uma única palavra. Você não precisa mais se preocupar com muitas coisas. Não há mais vida social, não precisa mais se preocupar em agradar ninguém. Sem mais falsos sorrisos, conversas forçadas e coisas do gênero. Você não precisa mais viver para os outros, mas, se você não viver para os outros, viverá para quê?

Poucos banhos mensais, sem mais vaidade. Um novo tipo de monge. Um novo tipo de ermitão. Você divide a maior parte de seu tempo entre a TV e o computador; uma fatia menor entre livros e quebra-cabeças. Você conhece um sem número de animes, e o motivo de você continuar vivendo passa a ser conhecer o final daqueles que está assistindo no momento (uma dica, sempre esteja assistindo algum), ou o final do romance que está lendo (histórias diferentes de sua vida maçante), ou então, a grande razão de sua existência passa a ser colocar a peça final do quebra-cabeças que está montando no momento. Nada muito nobre, nenhuma epopéia.

Você só escreve bilhetes para sua mãe para lhe pedir bebidas alcoólicas ou mesmo morfina. Então, você descreve seu sofrimento para persuadi-la (egoísta, imundo). E você chora por horas quando recebe aquilo que pediu através daquela pequena abertura da porta de seu quarto. E você ouve um choro contido, que faz de tudo para não ser ouvido, ir ficando cada vez mais baixo e distante do outro lado da porta. Culpa. Culpa. Culpa. E você queria tanto ser diferente! Mas você simplesmente não consegue! Não consegue!

Tudo que você faz é escrever esta carta. A única carta que escreveu durante estes 17 anos, 7 meses e 23 dias que esteve em seu quarto. Uma carta que fala um pouco sobre você, que poderia ser destinada a qualquer estranho, para que pudesse conhecê-lo um pouco. Mas ela é destinada a sua mãe. Dizendo que você já montou todos os quebra-cabeças que podia montar. Que não precisa mais passar um prato com alimento no dia seguinte. Que você fez tudo da maneira mais limpa possível, mas, ainda assim (você que sempre pediu tanto e retribui pouco), pede que sua mãe não entre; que mande outro retirá-lo do quarto após todos esses anos de isolamento. Não pede perdão, porque sabe que ela nunca o culpou. E você, inutilmente, lamenta que esta carta seja tão útil quanto foi sua vida.


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